A velhice em Lisboa. “Somos felizes, relativamente. Tudo é relativo na vida”

A idade e as possibilidades ditam a forma como os idosos de Lisboa regem as suas vidas de reformados. Alguns gostavam de viajar mais, mas o dinheiro não estica. Ocupam-se em jardins, a jogar ou a conversar

São 11 horas da manhã e o calor invade a capital. Os turistas passeiam pelas ruas de Alfama e à janela espreita uma ou outra cara, daquelas que ali moram há mais de 70 anos e que se recusam a ‘abandonar’ o seu bairro do coração, mesmo quando o lugar tipicamente lisboeta parece acordar todos os dias cada vez mais novo. As casas vão ficando vazias e dão lugar a jovens e estrangeiros. Nas conversas, as respostas acusam saudades do antigamente.

Lisboa está longe de ser o município mais envelhecido do país. A estatística é liderada pelo interior, com Vila Velha de Rodão à cabeça. Mas quanto se tem em conta o número de habitantes, é o concelho com mais idosos: em 2015, segundo os últimos dados disponíveis no Instituto Nacional de Estatística, viviam na capital 142.705 maiores de 65 anos, número que sobe para 587.299 se se tiver em conta toda a área metropolitana . O i quis perceber como passam o tempo, de que sentem falta, como aproveitam os dias. Em três pontos da capital, há vontade de conversar, histórias para contar e relatos que fogem depressa para o passado, como se a vida de agora fosse outra.

A vida dos velhos

Em Alfama, Etelvina rega as plantas. Vive ali desde que nasceu, há 78 anos. Morou quase sempre noutra casa, mas mudou-se quando deixou de conseguir subir os 52 graus do caminho. Como passa os tempos livres? A resposta é pronta: deitada no sofá, com a sua gata. “Aqui não há ninguém, aqui neste bocadinho só estou eu… O meu vizinho do lado sai de manhã e entra à noite. Os andares de cima estão ocupados por estrangeiros, só eu é que estou aqui. À tarde, às vezes, sento-me aqui à porta, sou como aquelas pessoas das aldeias, que se sentam à beira da porta. O meu tempo agora é esse.”

Etelvina diz que é esta “a vida dos velhos”, ou pelo menos é um pouco assim nos bairros mais antigos da cidade. Pouco adiante, dois amigos de longa data, Vítor e Henrique, conversam na rua. O primeiro foi empregado do Estado, trabalhou nas oficinas gerais de fardamento. Hoje, reformado, passa os dias pelas ruas de Alfama, onde já não existe quase ninguém para lhe fazer companhia. “Fico aqui sentado, por vezes vou até lá abaixo ao chafariz de dentro e volto para cima”, conta. Já Henrique Pato, mais conhecido por Patinho, tem 85 anos e vive sozinho na casa que o viu nascer. É viúvo e os filhos estão “arrumados”, assim como os netos. “Quem trata de mim é o meu filho mais novo, e quando não é ele, há uma senhora que vem”.

Com a chegada dos turistas, sentem que o bairro está menos amigo dos mais velhos. “Isto antes era muito giro, este bairro era muito familiar, agora já não, já tem muita estrangeirada”, atira Patinho, que não é o único a pensar assim. Celeste, que também vive em Alfama há mais de 70 anos, vê cada vez mais turistas a passearem pelas ruas. Trabalha quase há 30 anos como costureira e é dessa forma que continua a ocupar o tempo, para poder ajudar uma sobrinha de 24 anos. “É por ela que estou aqui a trabalhar, já lhe dei os estudos e estou a ajudar agora com a faculdade”.

Sentam-se, conversam, fazem os seus biscates e arranjos, passeiam. Noutra zona da cidade, junto à Praça Paiva Couceiro, Margarida e Dinis, 79 e 83 anos, dão a sua voltinha. Estão casados há 53 anos e em jovens já passeavam pela cidade. Agora têm mais tempo: levam a vida sem pressas, contam. “A vida é para viver com calma e para ser apreciada”.

Sentados lado a lado, num banco de jardim, observam as crianças a brincar e, quem lá passa, vai parando para conversar com o casal, como se estivessem habituados à presença deles ali. “Gostamos de vir aqui para o parque falar com as pessoas e gosto de me meter com as crianças”, confessa Margarida.

Margarida e Dinis conheceram-se nos CTT. “A minha vida profissional foi toda feita nos CTT, na parte administrativa. Criei os meus filhos e tratei da casa, fazia o almoço e o jantar aos sábados e domingos, porque os outros dias estava ao serviço”, diz Margarida, que aos poucos vai abrindo o livro de recordações. “Quem o namorou fui eu. Assim que o vi com uma camisa branca, um casaco cinzento com detalhes pretos e o olhar carinhoso, disse logo que este não me escapava, e não escapou!”.

Dinis, que na altura também trabalhava nos CTT confirma, entre risos, a história, acrescentando ainda que teve de investir devagarinho. “Para falar com ela tive que pedir a um amigo em comum para nos apresentar, porque se não, se eu fosse falar com ela, sozinho, sem nos conhecermos, a Margarida ia-me virar a cara e ignorar-me.”

Dinis reformou-se há 15 anos, quando lhe foi diagnosticado um cancro, algo de que hoje consegue falar sem problemas. “Já lá vai, está resolvido e estou curado”, resume. Com várias décadas de casamento, dão-se bem um com o outro e isso ajuda a levar os dias. “Não é agora aos 80 anos que nos vamos separar, somos felizes, relativamente, porque tudo é relativo na vida. Ele gosta de mim e eu gosto dele”, diz Margarida. O resto é como calha. “Às vezes, no fim de semana, vamos até Belém, espairecer um bocadinho, e ver o Tejo. Temos ainda uma casa perto de Vila-Real, ali no Douro Vinhateiro, onde costumamos passar o nosso verão, se aqui passeamos muito, no Norte passeamos ainda mais, há menos confusão e menos trânsito”.

No jardim desta praça perto da Rua Morais Soares joga-se às cartas e dominó e o grupo não quer ser interrompido. As mesas começam a encher de manhã cedo, vagam à hora de almoço e voltam a ser preenchidas pelas 14h30. Henrique Batista, nascido em 1947, prefere observar, por isso tem mais tempo para dois dedos de conversa. A vida foi preenchida. “Fui estofador durante 20 anos, chegando mesmo a decorar a casa da Elizabeth Taylor em Colares, Sintra”, conta com orgulho. “Estive em Angola na Guerra e fui chofer mais de 30 anos do presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, o que me permitiu ir a vários sítios e aprender muito”.

Hoje, porém, não aproveita tanto o tempo como gostaria, confessa. “Quando chegamos à reforma, já cumprimos o nosso trajeto de vida e agora seria uma boa altura para passear e tirar proveito destes últimos anos, no entanto, as coisas estão mais complicadas do que nunca. Quando eu e a minha mulher entrámos na reforma, começámos a ganhar menos de mil euros por mês, e comecei a passar mal porque sempre fui uma pessoa muito ativa e agora não o posso ser”. Com este rendimento, não estão no pior fatia da população: um estudo sobre o envelhecimento saudável dos idosos, apresentado em maio por um projeto da Universidade Nova de Lisboa, estimou que um terço dos idosos vive com menos de 500 euros por mês em casa e a grande maioria (77,9%) têm menos de 1000 euros.

Se a falta de dinheiro será o problema de muitos, para alguns a angustia é maior. Olhando para os ‘companheiros’, que num banco ao lado jogam dominó, Henrique explica que não é daqueles que se contentam com a vida de jardim. “Não gosto de ficar aqui no parque a jogar às cartas nem dominó, sinto-me um pouco desamparado. De manhã costumo vir para aqui um pouco, depois vou almoçar e dou uma volta pela zona… É uma situação engraçada. Quando era mais jovem ia passar férias muitas vezes a Espanha e às vezes pensava que se tivesse mais um mês de férias ficava lá, mas tinha que voltar para o trabalho. Agora que poderia ficar três meses se quisesse, não tenho dinheiro para ir… é muito complicado”.

Sentada noutro banco da Praça Paiva Couceiro está Adelaide. Vive na zona desde os 12 anos e tem agora 83. Os pais morreram quando ainda era nova e ficaram enterrados ali perto, no Cemitério do Alto de São João, mas ela faz questão de dizer que não quer o mesmo destino. “Quando eu acabar os meus dias, a minha filha e o meu filho já foram avisados de que quero ser cinza”.

Adelaide vive com a filha, genro e neto e passa os seus dias ali, na praça, sem se afastar muito de casa. “Já não consigo ir muito longe, a idade pesa e tenho que andar com esta bengala para me ajudar. Gosto de vir para aqui fazer os livros de sopas de letras que a minha filha me vai dando”. Foi casada durante 26 anos e o marido, o homem da sua vida, morreu quase há 30. Não tornou a ter ninguém ou a pensar nisso. “Foi o homem de quem mais gostei, o mais sério e o mais educado comigo. Tenho 83 anos e tive uma vida boa, foram anos bem passados.”

Se há quem passe os dias na rua, há os que preferem dar um salto aos centros comerciais.

Júlio, 72 anos, teve uma oficina mas já não trabalha, “fartou-se”. Hoje uma das ocupações é ir todos os dias ao hipermercado no Centro Comercial Colombo, fazer as pequenas compras para casa. É lá que o encontramos, assim como a Manuela, de 65 anos. Vive com a filha, que todas as manhãs, ao ir para o trabalho, a deixa ali, para as compras do dia.

No regresso, apanha o autocarro para estar em casa pela hora de almoço, numa rotina certa. “Faço isto todos os dias, nunca tive carta de condução, mas sempre andei de transportes públicos para ir onde queria”. Manuela nunca trabalhou e enviuvou há cinco anos. Continuar a ter autonomia é, por agora, quanto basta.