Há um episódio que me encanta. Estocolmo, 1958. O Rei Gustavo da Suécia desceu ao relvado para entregar a Taça Jules Rimet aos novos campeões do mundo de futebol, os brasileiros. Estão lá todos os grandes nomes: Gilmar, Djalma Santos, Nilton Santos, Vavá, Pelé, Didi, Zagalo, Bellini, o capitão. E Garrincha. O inimitável Garrincha, essa espécie de Charlot da bola redonda, ingénuo e audacioso como o personagem do filme The Champion, driblando um boxeur enorme na pequenez de um ringue. Dêem uma olhada às imagens. Vejam-no: vagabundo com um descaramento divino, diria o Carlos da Maia ao ministro da Educação sobre o facto de não haver literatura em Inglaterra. Para cá e para lá, intocável. Escorregadio como as enguias da ria da Barra da minha infância.
Era assim Garrincha. Foi assim Garrincha naqueles que foram os três minutos mais loucos da história do jogo. Contra a União Soviética, precisamente em 1958, dia 15 de Junho. Nelson Rodrigues, rei da crónica, deixou escrito para sempre: «O jogo Brasil x Rússia acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o ‘seu’ Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin. Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: ‘Isso não existe!’. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu».
Tudo isto lá na Suécia.
Mas volto ao rei. Gustavo Adolfo, sexto do nome. Veio do seu camarote com a taça, cumprimentou os brasileiros um a um, com a solenidade própria de um soberano nórdico, e quando estendeu a mão a Garrincha, ouviu: «Ei, meu chapa! Como é? Tudo bom?»
Isso, isso, um descaramento divino, com ou sem a bola nos pés.
Diz-se que a História é escrita pelos vencedores, mas também gosto de falar dos vencidos. Não faço ideia se o Gustavo Adolfo entendeu o português de Garrincha, mas pouco importa porque era de suecos que queria falar. Também foram cumprimentados pelo seu rei. Mais polidos na hora dos shake-hands, presume-se. Estavam do outro lado – a Suécia acabara de perder a final para o Brasil.
Dez anos antes, eram vencedores. 1948, em Londres. Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos. Nesse tempo, uma espécie de Campeonato do Mundo, vendo bem. Os suecos arrasaram: 3-0 à Áustria, 12-0 à Coreia do Sul, 4-2 à Dinamarca, 3-1 à Jugoslávia.
Não era motivo de espanto.
Três deles também tinham o descaramento divino de de um Carlos ou de um Ega.
Gunnar Gren, Gunnar Nordhal e Niels Liedholm. Jogaram juntos na selecção sueca e no Milan, de Itália. Ficaram conhecidos por Gre-No-Li.
Na final do Estádio Raasunda, em Solna, Nordhal não estava. Era o mais velho dos três e foi o primeiro a chegar a Milão. Diz-se que desprezado pela Juventus, que preferiu o dinamarquês Johannes Ploger, também presente nos Jogos Olímpicos de Londres. Nordhal ficaria a ganhar com a troca. Não demorou a convencer os dirigentes do Milan a contratarem os outros dois: Liedholm e Gren.
Gren: Il Professore.
Nordhal marcava golos atrás de golos. Isso mesmo: com um descaramento divino.
Liedholm era um purista do corpo: passava o tempo no ginásio, não fumava e não tocava em álcool. Ele que, na reforma, depois de ter sido um dos treinadores mais considerados de sempre, se dedicou às uvas e ao vinho.
Houve um dia terrível para o Gre-No-Li. No primeiro jogo frente ao Inter. O Milan esteve a ganhar por 4-1; perdeu por 5-6. Na época seguinte arrasou a Juventus: 7-1.
Durante anos estiveram, os três, do lado de cá e do lado de lá das derrotas.
Na Suécia, Garrincha transformou-se numa enciclopédia de piadas. Autênticas ou inventadas, pouco importa. Minutos antes dos três minutos, aqueles três minutos de uma absoluta inexistência, durante os outros três minutos, o dos hinos, deu uma cotovelada em Nilton Santos: «Olhe, olhe, o seu Carlito também veio!» E apontava para o fiscal de linha, de bigodinho pequeno e aparado, à Charlot.
E ria, gargalhando com um descaramento divino.