Regulação. Privacidade está a testar os limites da concorrência

As autoridades estão atentas aos termos e condições das redes sociais com os quais os utilizadores concordam muitas vezes sem os entender. Ao fazê-lo partilham dados e informação que poderá ser usada para direcionar publicidade 

Os termos e condições do Facebook podem estar na mira das autoridades. Para além das questões de privacidade, a rede social está a ser examinada por estar eventualmente a tirar partido da popularidade de que beneficia para levar os utilizadores a concordarem com condições gerais que podem não entender.

As “letras pequeninas” – os termos e condições da rede social – poderão ser o próximo alvo da concorrência, já que os dados que o Facebook obtém podem ser-lhe úteis para elevar as suas receitas com publicidade. Esta informação poderá permitir ao Facebook perceber que tendências ou padrões podem definir que tipo de publicidade, por exemplo, poderá ser mais adequada a determinado utilizador.

O gabinete de investigação de cartéis da Alemanha considera que o Facebook está a “extorquir” informação aos seus utilizadores.

“Quem não concordar com o uso dos dados é expulso da comunidade da rede social”, afirmou Frederik Wiemer, advogado de um escritório jurídico germânico citado pela agência Bloomberg. “O medo do isolamento social é explorado para que tenham acesso completo às atividades de navegação dos utilizadores”, acrescentou.

Também o responsável da autoridade da concorrência alemã, na semana passada e à mesma agência de notícias, revelou estar “ansioso para apresentar os primeiros resultados” desta investigação ao Facebook, algo que pode acontecer ainda este ano. Andreas Mundt é da opinião que este caso lida com “questões centrais para assegurar a concorrência do mundo digital no futuro”.

Informação enganosa

E o mundo digital do futuro está também na investigação das autoridades europeias ao Facebook devido à intenção de fundir os seus dados com a aplicação de mensagens WhatsApp.

A rede social comprou o WhatsApp em 2014 e, em maio deste ano, a Comissão Europeia determinou que o Facebook tinha de pagar uma coima de 110 milhões de euros porque Bruxelas considerou que foi dada informação enganosa no âmbito desta operação.

Aqui, o gabinete antifraude está a testar os limites das leis da concorrência, com ramificações muito para além da Alemanha e do Facebook, uma vez que todas as grandes empresas de tecnologia procuram novas formas de conseguir receitas com o seu “tesouro”: a informação que têm sobre os clientes.

De acordo com um jurista, é uma área na qual “as preocupações com a privacidade podem ser preocupações de concorrência” e os consumidores têm um papel mais lato que os compradores numa economia de serviços.

O exame germânico chega numa altura em que o Facebook, que tem atualmente dois mil milhões de membros e receitas anuais de 27 mil milhões de dólares, está sob maior escrutínio regulatório.

Quando apresentou o seu caso em março do ano passado, o regulador alemão sustentou que o Facebook guarda uma grande quantidade de informação pessoal que obtém através de várias fontes e usa para criar perfis para os utilizadores, permitindo que os seus clientes publicitários melhor consigam definir a quem direcionar os seus anúncios.

Tema em debate

Segundo as autoridades germânicas, quem tem conta no Facebook está obrigado a aceitar os termos de utilização sem muitas vezes perceber até que ponto está a concordar com a partilha de informação pessoal.

Os dados pessoais são um tema importante em debate na Europa, onde as empresas de internet têm sido criticadas pela forma como recolhem e o uso que dão à informação sobre as pessoas.

E a União Europeia já começou a investigar com maior profundidade o que as empresas de tecnologia fazem com a informação sobre os seus utilizadores que vão recolhendo e armazenando ao longo do tempo.

A Comissão Europeia tem chamado a atenção para o modo como o armazenamento de dados tem criado e cimentado o poder das gigantes tecnológicas. Por exemplo, o site da Google, que atrai um grande número de utilizadores, também capta a atenção dos anunciantes, conseguindo receitas que permitem captar ainda mais utilizadores.

Para além disso, a informação que a Google compila também gera melhores resultados, o que dificulta ainda mais a concorrência.

“Nome verdadeiro”

O Facebook já é o alvo de reguladores de privacidade e de direitos dos consumidores um pouco por toda a Europa.

Por exemplo, o regulador alemão sobre informação tem atacado a política de “nome verdadeiro” da empresa, que baniu os pseudónimos, e outros aspetos da política de utilização.

O Facebook saiu vencedor de um litígio judicial em relação à política dos nomes, mas perdeu um outro sobre a transferência dos dados da plataforma de comunicação WhatsApp para a rede social.

Há advogados que consideram que a abordagem pelo lado da concorrência é tão desafiante que deveria ser deixada aos reguladores da privacidade.

Estes, que têm pouca capacidade, terão mais poderes no próximo ano, quando as regras sobre a proteção de dados na União Europeia estiverem em vigor.

Através das regras da concorrência, poderá “ser difícil mostrar que o Facebook está de facto a abusar da sua posição no mercado”, diz um especialista citado pela agência Reuters.

“É provável que os utilizadores estejam a aceitar os termos de utilização do Facebook, não porque este domine o mercado, mas porque estão a demonstrar as suas preferências”, acrescenta.

Mudar de comportamento

Ao contrário do Google, o Facebook tem menos a temer da investigação alemã, uma vez que não pode ser multado. Se for provado que o Facebook viola as regras da concorrência, haverá uma imposição para que altere o seu funcionamento.

“Essa é a escolha certa. Nestas questões complicadas, onde se está em território novo, faz sentido, antes de impor qualquer multa, proibir uma determinada prática”, argumenta Frederik Wiemer.

Dada a vasta fortuna quer do Facebook, quer da Google, seriam poucas as multas capazes de fazer mossa. Um aviso à maior rede social do mundo para que mude a forma como atrai utilizadores e aponta à publicidade seria mais eficaz a longo prazo.

As Nações Unidas têm um relator especial sobre o direito à privacidade. A figura foi criada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU no âmbito de um esforço global de proteção da privacidade, em especial na internet.

De acordo com a Human Rights Watch, os avanços nas tecnologias digitais e a massificação da internet e das redes sociais tiveram muitos efeitos sociais positivos. Mas este movimento rumo à digitalização da informação também fez com que haja uma maior capacidade do poder político e económico de aceder à informação e dados pessoais dos internautas e utilizadores das redes sociais.

Em 2016 contavam-se 2,34 mil milhões utilizadores ativos das redes sociais – no mundo há perto de 7,5 mil milhões de pessoas. Em 2017 prevê-se que sejam cerca de 2,51 mil milhões de utilizadores e, em 2020, deverão chegar aos 2,95 mil milhões.

Mandato amplo

O relator especial da ONU tem um mandato alargado para cobrir todos os aspetos da privacidade e deverá ser capaz de trabalhar estas questões de diversas maneiras.

Estas passam pela atenção permanente às políticas públicas sobre armazenamento de dados pessoais e identificação das que interferem na privacidade sem justificação; e pela identificação das melhores práticas internacionais relativas ao Estado de direito, ajudando a garantir que os procedimentos e leis dos países respeitam a legislação internacional de direitos humanos.

O relator está ainda incumbido de analisar as responsabilidades do setor privado no respeito pelos direitos humanos no âmbito do lema “proteger, respeitar e reparar”, especificamente para o contexto da informação digital e tecnologias de comunicação e pela colaboração no desenvolvimento de normas internacionais mais eficazes para a privacidade no ambiente digital.

O Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos defende também que os Estados têm a obrigação de defender a privacidade dos cidadãos e que essa privacidade só pode ser violada dentro de um quadro legal. O Comité de Direitos Humanos da ONU assumiu também a posição e defende que a “obtenção de informação privada guardada em computadores por autoridades públicas ou por indivíduos deve ser regulada por lei”.

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