Aquela bola alta vinda lá da extrema

Não é a bola alguma carta que se leva de casa em casa: é antes telegrama que vai de onde o atiram ao onde cai. Parado, o brasileiro a faz ir onde há-de, sem leva e traz; com aritméticas de circo ele a faz ir onde é preciso; em telegrama, que é sem tempo ele…

Não é a bola alguma carta que se leva de casa em casa:

é antes telegrama que vai

de onde o atiram ao onde cai.

Parado, o brasileiro a faz

ir onde há-de, sem leva e traz;

com aritméticas de circo

ele a faz ir onde é preciso;

em telegrama, que é sem tempo

ele a faz ir ao mais extremo.

Não corre: ele sabe que a bola,

Telegrama, mais que corre voa.

(João Cabral de Mello Neto)

O nome deste poema é esclarecedor: «Carta do Jogador Brasileiro a um Técnico Espanhol».

A Europa descobrira o futebol brasileiro em 1938, no Mundial de França. Descobrira Leônidas da Silva, o Diamante Negro, de quem se dizia ter inventado o pontapé de bicicleta. Não sei se no futebol se pode inventar o que quer que seja. Nesse aspecto, não difere muito da literatura: começa-se pela imitação e acaba-se na criação. O que não é o mesmo do que inventar. Quero dizer: inventar pressupõe fazer algo de absolutamente nunca visto.

Porque nos adiantámos há pouco na narrativa, agora atrasamo-nos. Vamos lá à bicicleta. Poucos movimentos no futebol serão tão fantásticos como o pontapé de bicicleta.

O pontapé à meia-volta, ou o pontapé de moinho, também é interessante, embora não tão extraordinário. Os brasileiros estão convencidos de que o pontapé de bicicleta foi inventado por Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’. 

Os japoneses também: tanto que têm até um chocolate chamado ‘Black Diamond’, em homenagem a Leônidas. Mas, em matéria de futebol, o Japão é uma espécie de colónia do Brasil. E a opinião dos japoneses pode valer muito em electrodomésticos, aparelhagens, máquinas fotográficas e explosão demográfica, mas em futebol vale o que vale: isto é, pouco.

Antes de a televisão tomar conta do jogo, a visão do cronista fazia lenda. De Leônidas da Silva nunca vi, como a maior parte dos que me lêem, mais do que uns segundos de imagens pouco nítidas do Campeonato do Mundo de 1938, em França. 

E fotografias. 

Mas li muitas páginas sobre ele. Não tenho dúvidas: jogava imensidões! Leônidas da Silva é um dos jogadores mais bem escritos da história do futebol. Eis a prova: «Bem me lembro do dia em que Leônidas fez, pela primeira vez no Mundo, um gol de bicicleta. Jogavam Brasil e Argentina em S. Januário. Atacavam os brasileiros. Veio uma bola alta, lá da extrema, e Leônidas estava de costas para o gol. Sem tempo de se virar, ele deu o salto mais lindo que já se viu. Tornou-se leve, elástico, alado. Lá em cima, deitou-se e fez um maravilhoso movimento de pernas. A jogada, por si mesma, foi um deslumbramento. Mas além da beleza, da plasticidade, houve o resultado concreto: o gol».

Nelson Rodrigues escreveu estas linhas em 1966, pouco antes do Campeonato do Mundo: como vêem, as coisas encaixam-se. O golo de Leônidas frente à Argentina foi em 1934. Parece que Nelson Rodrigues não via muito bem: era míope. No entanto, o seu futebol era apaixonante. Basta lê-lo. Sobre as dioptrias de Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’, não há registo. O seu futebol, no entanto, era inacreditável. Basta ler Nelson Rodrigues.

Vinte anos antes de Leônidas da Silva ter inventado o pontapé de bicicleta, numa tarde sem data de 1914, o chileno Unzaga Asla estava de costas para a baliza. Uma bola veio alta, indomável, à altura da sua cabeça. Foi então que Unzaga Asla se lançou no ar e, paralelo ao relvado, pedalou com violência a bola para um golo sem igual. Confesso: não sei mesmo se foi golo. Deve ter sido. Só assim se entende que o seu nome tenha ficado para a história como o do inventor da ‘chilena’. ‘Chilena’ é, em toda a América Latina, o pontapé de bicicleta. Menos no Brasil, claro!

A Europa nunca descobriu Unzaga Asla. Descobriu Leônidas na Silva, carioca de São Cristóvão, o Homem de Borracha, em 1938. Viu-o marcar três golos contra a Polónia, numa vitória por 6-5, domingo de chuva em Estrasburgo. Acreditem ou não: nesse tempo, a vitória mais importante da selecção canarinha. Leônidas da Silva foi também um jogador ouvido como poucos. Em 1938, todo o Brasil se colava aos rádios a pilha. Diziam: radinho de pilha em forma de igrejinha. Luxo de pobre. É assim que se constroem os mitos. E este é um livro sobre mitos. Leônidas da Silva morreu no dia 18 de Janeiro de 2004, um domingo como em Estrasburgo, e não fazia ideia de quem era Leônidas da Silva: a doença de Alzheimer fizera dele uma pessoa diferente.

 

afonso.melo@newsplex.pt