Mariana Pacheco. ‘Comecei a cantar antes de começar a falar’

Chegou, irrepreensivelmente, cinco minutos antes da hora marcada. A conversa com a atriz Mariana Pacheco – que teve por poiso o hotel Vila Galé Palácio dos Arcos, rodeado de poetas – devia ser acompanhada de banda sonora. 

Mariana Pacheco. ‘Comecei a cantar antes de começar a falar’

Começou a cantar antes de falar, continua a pôr música antes de ligar a televisão quando chega a casa e, com osprimeiros trocos, comprou o material necessário para gravar-se a cantar. Afinal, cresceu assim. É neta de António Pacheco, guitarrista de Hermínia Silva a quem se deve a expressão ‘Anda Pacheco’. E os Pachecos parecem ter uma queda irresistível para a música. O tio, Mário Pacheco, também é guitarrista e compositor. A mãe trabalha num estúdio de gravação. E até a avó trauteava fados em casa para «se divertir». Mariana não se perdeu nem se encontrou na saudade do fado, que gosta mais de ouvir do que cantar, mas canta todas as músicas que lhe falem ao coração. E, diz, é a cantar que se sente despida, embora tenha sido o ecrã de todos os dias a primeira e, até agora, a maior janela a abrir-se ao seu talento. Aos 25 anos, protagoniza consecutivamente a segunda novela em horário prime time da estação de Queluz, Espelho d’Água. No ano passado, a vilã Catarina trouxe-lhe o prémio revelação. 

Recebeu o prémio revelação dos Globos de Ouro no ano passado, pela vilã Catarina em Coração d’Ouro, o seu primeiro papel como protagonista na televisão. A distinção trouxe mais responsabilidade?

Acho que não tem a ver especificamente com o prémio. Senti isso só pelo facto de ter tido um papel com alguma importância e com algum peso. Sinto que correu bem, se analisar a coisa de uma forma geral, tive muito boas críticas. A partir do momento em que acabou e recebi o convite para fazer outra protagonista [Rita Faria, na novela Espelho d’Água], aí sim, senti a necessidade de estar à altura. Ou até de superar, quem sabe. O importante é nunca ficar abaixo das expectativas. Mas não acho que tenha a ver com o prémio relativo a esse trabalho. Foi um reconhecimento e para mim foi assim a cereja no topo do bolo. Chegar ao fim e receber um prémio daqueles é transcendente, é brutal. Mas não acho que tenha influenciado a responsabilidade de projetos futuros, isso deve ser sempre inerente a todos os trabalhos. 

Como chegou ao papel da vilã Catarina?

Foi uma história tão engraçada que vou partilhar. O papel não era para mim, não fui a primeira aposta. Houve uma altura em que ficaram sem essa pessoa e andavam à procura da protagonista. Estava a cantar no Casino Lisboa e a minha amiga Lúcia Moniz foi ver-me. A Gabriela Sobral estava lá porque tinha ido ver o concerto dos Dama, que fui abrir. Foi uma série de coincidências, fui falar com ela, ainda estava a gravar o Bem Vindos a Beirais, e três dias depois sou chamada para o casting. Acabei por ficar, mas isto para contar que houve uma série de coincidências. Lá está, estava no dia certo à hora certa. Foi a piii da estrelinha.

Há uma Mariana antes da Catarina e uma Mariana depois da Catarina?

Há. A Catarina enquanto personagem tinha aquela personalidade de vilã e todo aquele negativismo à volta dela mas mudou-me para melhor. Em termos profissionais foi uma mudança muito mais radical. Senti que foi a altura em que vivi um maior crescimento num menor espaço de tempo. E também comecei a olhar para esta coisa de representar de uma maneira completamente diferente, além de ter abraçado um lado muito mais verdadeiro, porque houve um trabalho de construção feito em casa e de uma forma muito mais interior. Isto [esta forma de trabalhar] veio também de inspirações como a Rita Blanco, ou de trabalhar com um Sérgio Graciano que puxa por nós mesmo cá de dentro para que depois as coisas passem para fora. Enquanto pessoa, aquilo que comecei a sentir com a Catarina e que sinto agora também com a Rita é que começo a ver esta arte como uma forma também de evoluirmos enquanto seres humanos. Acho mesmo que toda a gente devia ter esta experiência, pôr-se no lugar de outra pessoa. Torna-nos mais tolerantes às outras pessoas, porque temos de interpretar alguém que tem opiniões completamente diferentes mas que temos que defender, portanto temos que acreditar nelas mesmo que não estejamos de acordo. Abre-nos um bocadinho os horizontes e torna-nos mais tolerantes às outras pessoas. E isso é bom.

É curioso dizer que uma vilã a fez sentir melhor pessoa.

Sim. Efetivamente, sei que defendi aquela personagem como se fosse uma pessoa que tinha os seus motivos para fazer determinadas coisas. Não somos todos nem vilões nem bonzinhos. Todos fazemos coisas erradas que achamos que são por bons motivos – ou não – e isso pode não ditar exatamente aquilo que somos. Todos temos um bocadinho esta bipolaridade de podermos ser bons ou maus, ou de podermos fazer coisas boas ou más. 

Aliás, escreveu uma biografia para essa personagem para sustentar os motivos que teriam levado a essas escolhas.

Escrevi, mas não foi iniciativa própria. Começou por um exercício de construção de personagem que fizemos numa altura de ensaio com a Laís Corrêa. Ela fez umas coisas assim muito fora e uma delas foi precisamente pedir que escrevêssemos um texto sobre o passado da personagem, numa altura em que ainda tínhamos muito pouca informação ao nível dos episódios. Achei muito interessante. Fiz logo uma espécie de diário em que retratei uma situação específica de uma altura. Curiosamente quando a Rita [Blanco] leu o dela, as nossas histórias encaixavam. Foi muito interessante e foi uma coincidência muito gira. E isso começou a ajudar-me a construir a personagem e por isso tornou-se prática constante, fi-lo sempre que me apetecia e para cenas mais importantes. Ajudava-me a ter coisas cá dentro mesmo que não fossem ditas. 

Até porque, nessa personagem que cometeu homicídio, não podia ir propriamente poder retirar essas experiências da vida real.

Pois, não se vai propriamente matar uma pessoa para ver qual é a sensação (risos). Há coisas que se podem fazer e que ajudam. No caso da Rita, que estou a fazer agora, entrei em contacto com algumas pessoas que fizeram voluntariado e que estiveram em contacto com refugiados. Por acaso não tive tempo para o fazer mas gostava. Ela também passou um tempo na Marinha, por isso também falei com alguns militares.

Passou-lhe pela cabeça fazer a recruta?

Não, isso já era entrar noutro caminho, depois não voltava para a representação (risos). Mas lá está, há sempre um limite para estas experiências, há sempre uma zona onde não podemos ir mais longe e aí entra a parte mais gira disto tudo que é representar uma coisa que nunca fizemos, nunca sentimos ou não passámos por ela. No meu caso, escrevo sobre isso. Gosto muito de ler e de escrever, mesmo coisas fictícias, por isso é mais fácil para mim entrar num determinado mood.

Escreve para si ou com o intuito de um dia publicar?

Adorava! É um dos meus objetivos, está na minha bucket list escrever um livro.

Tem mesmo alma de artista: canta, representa, escreve…

Só não danço (risos). Mas bem coreografada talvez lá fosse (risos).

Disse numa entrevista que começou a cantar quase antes de começar a falar.

Não foi quase, foi mesmo, a minha mãe confirmou.
 
Tem feito alguns projetos nessa área, mas a música ainda é um sonho por cumprir, para puxar um bocadinho para a conversa um dos seus autores preferidos, Fernando Pessoa?

(risos) A música começou muito antes da representação, no entanto ficou um bocadinho mais para trás, ou pelo menos, sinto que não se abriram tantas portas para a música como se abriram entretanto para a representação. Tive oportunidade de fazer um musical, que adorei, e espero que outros convites apareçam. Mas é um tema mais delicado porque, como é óbvio, gostaria de não cantar apenas músicas dos outros e de entrar mais na área dos originais.

Tem músicas suas?

Coisas na gaveta, por terminar ou que fiz e entretanto achei que não eram bem por ali. Sinto que em relação à representação temos uma personagem que nos é dada, regra geral, só temos de construir mais tendo em conta aquilo que temos. Isso é mais fácil porque já nos é dada alguma coisa e estamos a ser outras pessoas. Já quando começamos a querer fazer a nossa música queremos ser nós próprios, mas ao mesmo tempo há uma série de caminhos que podemos percorrer. Como não toco também acabo por ter algumas limitações nesse sentido de compor, porque escrevo apenas, faço só a melodia da voz e não tenho grande noção de bases instrumentais por isso precisaria de ajuda. Depois é preciso definir o que se quer dizer às pessoas, se se canta em português ou inglês…

Mas acha então que ser cantor é mais íntimo do que ser ator, no sentido de não se ter capas?

Claro, muito mais! Mesmo quando canto – todos os anos vou ao Casino Lisboa com a minha banda de covers – faço o meu ‘repertoriozinho’ e sinto que são as minhas músicas, embora sejam músicas de outras pessoas, porque são temas que me tocam, que oiço há muito tempo. Quando as canto é como se as sentisse minhas. E aí sinto-me completamente vulnerável e quase nua, porque estou a cantá-lo. E é muito mais íntimo sim, porque sou completamente eu, não há outra personagem que esteja ali. 

Este ano foi cantar na abertura dos Globos de Ouro.

E no ano passado também! Foi assim um dia de Globos de Ouro muito intenso para mim. Muita gente não fazia sequer ideia, e foi muita giro. Entrei sozinha em palco e foi uma sensação muito boa, estava o Coliseu cheio. É mesmo daquelas coisas em que se pensa: ‘Não quero sair daqui, não quero que isto acabe’. Muitas pessoas depois vieram perguntar-me se era mesmo eu a cantar. Há muitas pessoas que não sabem porque conhecem só o outro lado, o que passa todos os dias na televisão. 

Gostava de ter um dia um papel em televisão que a pusesse a cantar ou aí ia chocar a tal intimidade de cantar com a representação?

Gostava, mas acho é que é sempre uma situação delicada e que é fácil de entrar, não quero dizer no piroso, mas de qualquer coisa assim do género. Não estou a ver a coisa a correr bem, mas em teatro talvez resultasse melhor. Mas também depende sempre do estilo, claro.

Tem 25 anos, começou a aparecer aos 11. Mais de metade da sua vida nos ecrãs.

Sim, mas com algumas pausas pelo meio.

Houve uma altura desse caminho em que se tornou numa figura pública, reconhecida na rua. Este lado já vem tão colado à profissão que é uma imposição incontornável?

Na rua lido muito bem com isso, porque estranhamente não me chateiam muito. No outro dia estava no fórum Sintra, a subir umas escadas rolantes e estava a descer uma família que olhou para mim e disse: ‘Oh, é a Mariana Pacheco’. Fiquei tão surpreendida por dizerem o meu nome, normalmente tratam-me pelo nome das personagens. Quando vêm ter comigo é sempre muito agradável, as pessoas são sempre muito simpáticas para mim, não tenho nada a apontar e às vezes até sabe bem, especialmente num dia em que estamos mais em baixo. Claro que há sempre o lado mais negativo que é a exposição e isso chateia-me porque gosto muito de estar no meu cantinho, sossegada e discreta. Obviamente que não gosto de estar num café a falar e sentir que há pessoas que estão com atenção à conversa, ou que me tiram fotografias e no dia seguinte as vejo nas revistas. Isso dá sempre lugar a comentários e a títulos mais sugestivos que se calhar têm ou não a ver com nada. Há um lado da nossa vida privada que deveria ser mesmo privado e sinto que ainda há muito pouco respeito em relação a isso. E isso é triste.

Já sentiu alguma vez que a sua intimidade foi devassada pela imprensa?

Sim. Não faz sentido responder, porque no fundo é perpetuar uma situação que aconteceu e que foi exposta. É o trabalho deles [imprensa], também não podemos falar mal disso porque é isso que eles fazem, mas para mim é chato, claro. E acho mesmo que não devia ser assim, devia haver respeito pela parte privada porque no fundo nós somos… Enfim, há figuras públicas que têm um trabalho que tem a ver com a sua própria vida privada, mas quem faz música, televisão ou quem está a ser exposto publicamente pelo trabalho que faz não devia ser exposto pela sua vida privada.

Estava preparada para ver a sua vida íntima nas revistas?

Não, de todo. É horrível. Tenta-se ignorar e esperar que passe, porque no fundo é temporário. Quando isso aconteceu vieram-me mostrar porque não vou à procura das notícias sobre mim. Mas tudo passa. 

Está a falar de que fotografias e de que conteúdos, das que lhe tiraram no ano passado no Nos Alive?

E não só. De todas as que já aconteceram até agora.

Já teve momentos nas gravações da novela que lhe deu um prémio que disse terem sido muito difíceis e em que achou que não ia conseguir. O medo pode paralisar?

Na Catarina acho que foi o segredo da maior parte das cenas. 

Teve medo de fazer as cenas?

Medo é eufemismo! Foi mesmo pânico. Existiam cenas muito fortes e foi a primeira vez que tive um papel daqueles nas mãos, por isso para mim era tudo um ai ai que vou deixar isto tudo cair. Foi uma grande aposta em mim e tive medo de não estar à altura das expectativas. Fiz cenas muito desafiantes que me meteram completamente fora da minha zona de conforto. E essa insegurança e desconforto, pelo menos comigo, resultam. Há pessoas que não funcionam com essa pressão, no meu caso senti que ultrapassei e que fui um bocadinho mais longe do que aquilo que achava que conseguia fazer. Mas não gosto de viver constantemente assim porque às tantas é tortura.

Já sentiu que foi alguma vez longe de mais, a um sítio do qual não conseguiu voltar imediatamente?

Há bem pouco tempo aconteceu, numa cena que ainda vai demorar a passar, só posso falar de forma abstrata. A personagem dá a entender que vai fazer algo que eu própria achei que era contraditório pela sua própria personalidade, mas que vem no seguimento de uma série de coisas que ela passa. E era uma cena em que ela tinha que chegar a um nível emocional muito específico. Estranhamente não me custou entrar nesse estado, mas custou-me sair.

Qual era a emoção?

Desespero profundo, um sentimento de desistência. Não consegui parar, fizemos vários takes e depois eu fiquei numa bolha só minha. As pessoas falavam comigo e eu estava… Nem sei onde. Fui. Bazei só, não estava mais cá. Chega a ser assustador. E mágico ao mesmo tempo.
 
Nasceu em Lisboa, morou sempre cá?

Não, por volta dos 10 anos fui morar para ali [aponta para o outro lado do rio], quase dá para ver a casa da minha mãe que é do outro lado da ponte, no Monte da Caparica. Vivi lá até aos 18 anos, quando saí de casa.

Diz que foi uma criança muito feliz, que a sua mãe, que a criou, andava sempre a mascará-la. Chegou a morar com o seu pai, tem memórias de vocês os três enquanto família?

Tenho poucas. 

Refere-se sempre à sua mãe como um centro da sua vida, que fez o papel de pai e de mãe. Há alguma amargura nestas palavras?

No fundo foi quem esteve mais presente. Criámos uma ligação muito forte. Era a pessoa que estava ali sempre, desenvolvemos até uma espécie de amizade, uma cumplicidade muito grande. Não há qualquer amargura quando digo isso.

Vi um vídeo seu, muito pequenina, sem dentinhos à frente em que dizia: ‘Mamã, estás-me a ver mal mas quando eu for grande tu vais-me ver’. Já sentia que ia ser artista?

(risos). Ai… Premonições da Mariana Pacheco. Pois, o estranho é que já apanhei vários vídeos meus dessa altura em que estou sempre a dizer esse género de coisas. Até tenho aqui um vídeo no telemóvel em que estou num sítio qualquer a dizer: «Nesta ‘filmação’, tenho sete anos que é para quando eu for mais crescida ver». Estava sempre a falar num género de futuro. É curioso porque não sei se me estava a referir a isto [a uma carreira nesta área], mas vendo os vídeos agora acaba por ser uma coincidência.

Lembra-se do que sentia nessa altura?

Só queria ter uma câmara apontada a mim e fazer palhaçadas e teatrices, a minha mãe já nem tinha paciência. Sempre que ela estava a filmar qualquer coisa eu aparecia-lhe à frente e dizia: ‘Deixa-me contar uma história ou cantar uma canção’. Queria sempre tentar ser o centro das atenções, onde quer que fosse. A minha mãe contou-me até que quando eu tinha um ano e tal, na primeira viagem de avião que fiz, ao Brasil, não deixei a tripulação em paz. Levantava-me e ia cantar para as pessoas. Só comecei a ganhar vergonha há pouco tempo [risos].

Falava muito nesses vídeos em pequenina da tal estrelinha da sorte, algo que julgo que todos temos até percebermos a dimensão do mundo. Quando começou a ter noção dessa dimensão na área que escolheu achou que a sua estrelinha poderia não ser suficiente?

Quase todos os dias! Quando comecei a ter mais noção não só da concorrência mas da realidade e da dificuldade das coisas, porque muitas vezes não é só uma questão de jeito ou de se trabalhar muito, é também sorte e estar no sítio certo à hora certa. Há um conjunto de coisas que não depende só de nós e como tu há tantas outras pessoas incríveis que se calhar não tiveram as mesmas oportunidades. E quando tive noção disso tudo claro que questionei se iria conseguir. Não significa que não pudesse ser feliz a fazer outra coisa, talvez fosse. Mas não era a mesma coisa. 

Esse comportamento mais expansivo estendia-se à escola?

Perdi isso quando entrei nos Morangos com Açúcar, porque efetivamente tinha os olhos todos da escola postos em mim e então tudo o que queria era não dar nas vidas, era andar na sombra. E aí começou também essa vontade de ser mais discreta por esse motivo. Até então era sempre a líder de um grupo qualquer, como do voleibol, onde fui federada.

Já era adolescente?

Tinha 13 anos. 

Sentiu a crueza dos adolescentes?

Sim e senti que se andasse por ali a pavonear-me ou a ser o centro das atenções seria mais desagradável, que já era. Ou seria sempre, fosse qual fosse a minha atitude, não sei. Até porque a minha personagem não ajudava, era uma miúda tão irritante que as pessoas achavam que eu era mesmo assim. Depois na escola ouvia bocas, do tipo ‘olha aquela da televisão’, ‘olha a arrogante’. Por isso comecei a estar mais no meu cantinho.

O seu sentido de auto preservação vem dessa altura, não é inato?

Foi por aí. Mas esta coisa de ser o centro das atenções também acontecia mais dentro do meu mundinho. Até aos cinco anos gostava efetivamente de me meter com as pessoas e de falar com elas, mas quando comecei a tomar consciência comecei só a querer fazer isso em casa, ou com os meus amigos. Fui perdendo cada vez mais isso [a espontaneidade] à medida que fui crescendo em público, mas não deixou de estar lá essa essência, não perdi por completo a necessidade de exteriorizar este lado mais artístico, ou sei lá, mais parvo que tenho. Às vezes sai, pronto.

Tinha quantos anos quando ganhou um campeonato de xadrez?

Era novinha, devia ter uns dez ou onze anos. Não é propriamente uma coisa que seja muito credível ou importante (risos). 

Consegue usar as palavras para pôr uma imagem na sua memória mais antiga?

Isso é difícil por causa dos vídeos todos de que falámos, manipulam um bocadinho, parece que me lembro deles e vou inevitavelmente para ali. Mas lembro-me de uma fase… As crianças normalmente têm medo do papão, eu tinha medo de uma pessoa real. Isto deve ter vindo da minha avó ou da minha mãe, que me meteram medo com uma senhora sem-abrigo, careca e gordinha que andava sempre com um saco, na zona de Arroios, no jardim Constantino. Diziam-me que era a Cuca e que fazia mal às crianças, uma crueldade. Lembro-me de a minha avó me chantagear com isto, fiquei sempre com a sensação de que a Cuca me tinha marcado na mão. 

Tinham alguma tradição familiar?

Karoke. Desde sempre. 

Quem participava?

Eu e a minha mãe. A minha avó cantava mas era mais os fados para se divertir, tinha mais a ver com o lado do meu tio e do meu avô. O meu avô era o guitarrista da Hermínia Silva, por isso o fado esteve sempre muito presente. A expressão ‘anda Pacheco’ vem precisamente do meu avô e da Hermínia, que quando se enganava na letra dizia isso e ele tocava com mais força (risos). O meu tio, irmão da minha mãe, é o dono do Clube de Fado, ali na Sé.

E nunca cantou fado?

Cantei, o fado está-me no sangue mas não é o que naturalmente gosto mais de cantar. Gosto mais de ouvir. Até porque a minha voz não é muito do fado, se bem que hoje em dia a coisa já é tão modernizada e é tão bom ver vozes mais modernas a cantar fado, que não tenham propriamente aquela carga específica da voz do fado. Isso no fundo não existe, música é música. Nunca me deu para aí, mas em mais nova cheguei a cantar no restaurante acompanhada pelo meu tio.

Que também toca?

É guitarrista e compositor também, é o Mário Pacheco. 

Quem são então as suas grandes referências na música?

Tenho muitas, a maior parte delas vem da minha mãe. Tenho aquelas bandas old school que amo de paixão como os Pink Floyd, Beatles é assim quase uma religião, os The Doors. E depois o Bob Dylan, o Frank Sinatra, Supertramp. Gosto de rock, de Rolling Stones e Nirvana. E da [Christina] Aguilera, que no fundo foi uma refêrencia fui acompanhando e que passou por uma influência mais do jazz. A Amy Winehouse, o Nat King Cole… Já chega? Acho que posso ficar aqui para sempre!

Continua a chegar a casa e a por música?

Sim, mais do que acender a televisão. Ligo logo a minha colunazinha.

O que anda a ouvir agora?

Curiosamente ando virada para a música brasileira e portuguesa que nunca fez muito parte do meu gosto musical. Estou a conhecer mais coisas e estou a gostar. Agora no carro vinha a ouvir a Aline Frazão. 

Quando saiu de casa aos 18 anos qual foi a primeira coisa que comprou?

Coincidiu com a altura em que a minha mãe me deu o dinheiro que tinha guardado do meu trabalho e em que eu queria muito começar a gravar os meus primeiros covers em casa. Ela trabalha num estúdio de som, e eu chateava sempre o técnico para ir lá gravar coisas e ele dizia: «Oh menina, vir gravar brincadeiras não, se quer vir para aqui grava originais!» Então resolvi fazer em casa e com esse dinheiro comprei um iMac, umas colunas da m-audio, uma placa de som e um microfone e foi nessa altura também que saí de casa. Ainda hoje uso exatamente essas mesmas coisas para gravar.

Disse uma vez numa entrevista que tinha muitas camadas, que não era fácil gostar de si.

Às vezes digo coisas parvas (risos). Quer dizer que no fundo não é logo à primeira vista que uma pessoa conhece a outra. Sei que há muita gente que tem uma primeira impressão de mim que não é a mais agradável. Ou se calhar é aquilo que eu mostro e nem é intencional. Ou porque não entendem o meu sentido de humor e levam a mal algumas coisas que digo, que mostro ou faço. 

Acha que é muito direta?

Tendo a ser muito transparente. Isso para mim é bom, quando não gosto de uma coisa vê-se na minha cara. Mas também não gosto de falar do que é que os outros acham. 

Qual foi o momento mais fraturante da sua vida?

Fraturante?

Sim, o mais feliz ou o mais triste e que a mudou por alguma razão.
É difícil, mesmo. Sei que tive fases que me foram mudando, não sei se houve uma situação de momento. Mas acho que foi quando saí de casa e comecei a experimentar a vida com mais independência, quando comecei a tentar mostrar que era uma mulher que se conseguia desenrascar sozinha sem precisar de apoio.

Por que tinha essa necessidade?

Sempre tive, era uma coisa que já vinha de há muito tempo. Tinha muito esta vontade que não sei se era a de provar aos outros ou a mim mesma que me safava sozinha. Para já porque a minha mãe me educou nesse sentido, mostrou-me sempre como se faziam as coisas e deu-me liberdade para fazer as minhas próprias escolhas. Ajudou-me sempre quando saí de casa, nunca me senti desamparada ou totalmente sozinha. Mas foi aí também que percebi o que era gerir a minha vida, o meu tempo, o meu trabalho e as minhas contas à minha maneira. E não é fácil, com 18 anos parece que já não somos crianças mas somos. Tenho 25 e já vivo sozinha desde essa altura, já aprendi algumas coisas.

Essa liberdade de viver sozinha trouxe alguns excessos?

Não. Tive uma altura em que trabalhei na noite, foram alguns anos, mas nunca senti esse descontrolo do tipo ‘agora estou sozinha não devo justificações a ninguém’. A partir do momento em que saí foi para provar que estava à altura, só fiz asneiras quando estava a viver com a minha mãe mas não vamos falar sobre isso (risos).

Já mudou alguma vez de opinião em relação a pensamentos que pudesse ter e que considerasse estruturantes para si?

Sempre tive o sonho, desde miúda, de ir para fora e de continuar o que quer que fosse que estivesse a fazer, quer fosse música ou televisão, lá fora. Queria era ir, para as Américas, para Londres, para onde fosse. E queria ficar, era quase um objetivo. Deixou de ser há pouco tempo porque comecei verdadeiramente a apaixonar-me por Portugal. Para já, estou a começar a querer cantar em português que era uma coisa impensável, antes achava que era muito difícil. Continuo a querer ir para fora mas para alargar o meu leque de experiências e viver outras coisas, mas vou querer sempre voltar para cá e lutar também pela cultura do nosso país. Se puder fazer a diferença em algum sítio, que seja no sítio onde nasci. E essa foi uma mudança de opinião radical, do 8 para o 80.

Não é fundamentalista em relação a nada?

Não sou. Tenho opiniões fortes em relação às coisas mas gosto de discutir assuntos com pessoas que têm opiniões opostas às minhas. E não é discutir para mostrar que tenho razão, mas porque acho engraçado eu ver as coisas de uma forma e outra pessoa ver exatamente de outra. Isso é muito interessante.
 
Disse que gosta muito de ler, esse gosto pela discussão é reflexo disso?

Talvez.

Qual foi o livro que mais a marcou?

Tenho sempre o Livro do Desassossego como referência mas não foi o livro que mais me tenha marcado, mas gosto de o mencionar porque é um livro que acabo de ler e já tenho saudades porque é tão bom. Como tudo em Fernando Pessoa.

O que a fascina tanto?

Se entrarmos por aí vamos estar três horas na conversa.

Dê-me a versão condensada.

Bem, Fernando Pessoa não é só um poeta, é muitas outras coisas muito mais interessantes do que isso e na minha opinião é um dos filósofos mais importantes que existiram. E depois tinha um conhecimento profundo de outras áreas que me interessam também, como a numerologia e a astrologia. 

Fale-me sobre isso.

Não… São temas que gosto de estudar. E quando comecei a estudar estas áreas e outras talvez um bocadinho mais alternativas comecei a perceber que Fernando Pessoa tinha um dedinho nisto tudo. Comecei a ler os poemas dele de outra maneira e a dar-me com pessoas que percebem disso e que me ensinaram uma série de coisas. E pronto, comecei a apaixonar-me por ele, que já morreu há tanto tempo e continua a ser uma fonte sem limites. 

Como é a sua relação com as redes sociais?

O meu Instagram [andapacheco] é muito artístico, é todo assim mais em preto e branco e nem tenho a localização ativa. Não tenho Facebook… Gosto muito pouco de redes sociais, sou muito old school nestas coisas. No ano passado fiquei sem telemóvel duas semanas e nem me dei ao trabalho de o ir arranjar. Pensei que se lixe, mandem-me emails que vejo no computador em casa. E a minha melhor amiga escreveu-me uma carta, foi assim das coisas mais bonitas. Já ninguém escreve cartas, é pena.

Não sente necessidade de promover o seu trabalho nas redes sociais?

Faço isso de outra forma. Tenho um hastag para esta personagem, um trocadilho, #oqueéquearitafaria. O meu Instagram é quase 90% trabalho, não mostro tanto a minha vida pessoal. A minha página de fãs é gerida pela agência. 

Quais são as ambições para depois ‘do que é que a Rita Faria’?

Música, música, música. E cinema, adorava. Mas quero continuar na televisão porque gosto francamente deste ritmo alucinante, mesmo de viver neste ritmo. Mesmo quando me queixo, adoro esta vida de não estar parada. E as novelas dão esta coisa.