Vamos por partes. A primeira – um filme: Um Homem Chamado Cavalo. Que nome extraordinário, convenhamos. Tem ritmo de tango de Piazzola e Amelita Baltar na sua voz lavada a uísques. E tudo isto porquê? Um inglês capturado por uma tribo de índios e tornado escravo para todo o serviço. Não devia ser ao contrário? Afinal quem escraviza quem? Índios, cavalos, cowboys, rapazes simples e sem cultura, as curvas inesquecíveis de Claudia Cardinale que nunca vi em lugar algum senão na tela do Europa, do Paris, do Condes, desses lugares onde a minha adolescência se tornava adulta como Maria de Buenos Aires.
Vamos por partes. Vamos até ao final desta crónica por partes. Big Apple. A Grande Maçã. Mas, caramba!, que maçã é esse sem formas de Eva sem Adão? Nova Iorque? Peço-vos desculpa adoradores da cidade do mundo sem infinitos, mas estou-me positivamente nas tintas para Nova Iorque. Eu, que jamais seria capaz de sussurrar «je m’en fiche pour Paris…», assim mesmo com reticências porque a verdade das nossas cidades são feitas de reticências.
Venham comigo nas corridas. As corridas de cavalos.
Entendem?
Big Apple! Corram na prosa de um jornalista absoluto. E por que hão de ser os escritores eternos e absolutos e os jornalistas não?
John Fitz Gerald. Separado entre Fitz e Gerald. Um toque requintado de uma antiga opulência, quem sabe? Eu não sei. Gastarei o espaço destas linhas para vos fazer perguntas. Respondam-me, por favor!
Ele, Fitz Gerald, inventou a Grande Maçã.
Por causa dos cavalos. Não esqueçam os cavalos.
Nelson Rodrigues, o mestre brasileiro da crónica sem limites, tinha igualmente um cavalo. Escutem-no nesse sotaque do português cantado de Itapuã: «Há ainda um cavalo na minha infância profunda. Mas também o cavalo foi cheiro. Antes de ser uma figura plástica, elástica, com espuma nas ventas – o cavalo foi aroma como o mar.»
Cavalo espuma como o mar.
Fitz Gerald dizia, por seu lado: «Saímos deste buraco chamado Nova Orleães e caminhamos para Nova Iorque, a Grande Maçã, onde os nossos cavalos serão os reis das pistas».
Há lá maior poema do que a corrida de um cavalo!
Mas têm dúvidas? A mais pequena e minúscula das dúvidas?
Então eu repito, no ritmo inteiro de um poema de métrica indecisa: «Nos cavalos de Ucello, quem os guia/no triângulo no círculo branco/em demanda de pura geometria?/Difícil é travá-los e fixá-los/há um raio de luz em cada flanco/nos cavalos de Ucello nos cavalos».
Um homem chamado cavalo. Sem Richard Harris.
Um homem correndo com cavalos.
James Cleveland Owens. Por extenso, Jessie Owens.
Ele que vencera nas pistas as bestas macabras do nazismo.
100 metros; 200 metros; salto em comprimento; 4×100 metros.
Um negro voando com um Mercúrio de asas nos pés sobre Berlim em mil novecentos e trinta e seis.
Queriam humilhá-lo pela força branca da raça purificada de sangues que se não misturam.
E ele, voando, asas nos pés: Mercúrio Negro e impossível.
Podia escrever páginas inteiras sobre Jessie Owens. Que digo eu? Podia escrever livros inteiros sobre Jessie Owens sem nunca o ter visto ou sequer vislumbrado como as curvas estonteantes de Claudia Cardinale nas cadeiras apertadas do Cinema Paris, à Domingos Sequeira.
Jessie Owens neste dia que escrevo agora, momento preciso, estava em Cuba.
26 de dezembro de 1936!
Cuba velha, sem Sierras Maestras…
Um jogo de futebol para entreter enquanto o filho dos escravos servia de figura de circo.
Disse que ia escrever uma crónica de perguntas, mas não tenho respostas.
Não tenho respostas como Piazzola que dizia «ahora que es muerto para sempre». Mas há alguém que não esteja morto para sempre, Astor?
Estádio Tropical de Havana. James Cleveland Owens contra um cavalo. Partiu nessa corrida absurda com 36,5 metros de avanço (não se espantem, dividam por milhas), e resistiu ao galope de Julio McCaw, seu adversário quadrúpede de vinte e oito patas como nos contos de Dalton Trevisan.
O espaço vigoroso das pernas. A batalha desigual dos pulmões e do tamanho do coração.
Jessie Owens, o vencedor do canalha Adolfo foi também capaz de vencer o cavalo.
Era um número de circo. Ele que fizera da Berlim de Leni Riefenshtahl um circo do seu próprio filme de uma raça ariana batida na arena de uma criação sem sentido.
Pois. Pode chamar-se cavalo um homem que vence um cavalo.
Mas um cavalo que vence um homem nunca passará de uma caricatura de si mesmo.
afonso.melo@newsplex.pt