Carlos Queiroz: ‘Não tenho contas para acertar com ninguém!’

Queiroz esteve em Lisboa e falou de tudo antes de regressar para lá de Teerão. Com a tranquilidade que só a vida vai dando…

Tenho na minha frente um homem tranquilo. Os anos passaram em catadupa sobre nós dois, mas isso não mudou a forma de nos vermos um ao outro. Profissões paralelas, por vezes.Pode ser que, pela teoria euclidiana, elas só se encontrem no infinito. Mas as nossas desmentem isso, cruzando-se há quase três décadas.

Alfredo Farinha – um mestre!; um mestre! – escreveu certa vez: «Quando comecei a escrever em jornais, o meu propósito, a minha ambição, o meu sonho, era ser jornalista da Grande Imprensa. Ir à procura da vida no meio da vida, ir ao encontro dos acontecimentos onde eles acontecessem, conhecer os problemas dos homens, devassar o segredo das coisas desconhecidas, saber as razões dos êxitos e dos fracassos da grande sociedade, ouvir os políticos falarem de política, os economistas de economia, os artistas de arte, descrever os contrastes entre os dramas da fome e os esplendores da opulência, contar as histórias verídicas da paz e da guerra – e analisar, comentar, criticar tudo o que visse e ouvisse, com lealdade, com verdade, com o desejo de esclarecer e de ser útil».

Nunca li, em qualquer outro lado, uma tão bela declaração de amor a uma profissão que merecia não ter sido abastardada, vilipendiada por dentro, suicidária.

Hoje, tenho na minha frente um homem tranquilo e há entre nós uma amizade que o tempo reforçou.

Estou aqui para ouvi-lo, para questioná-lo, para que se exponha. Ele que sempre prezou uma teimosa descrição.

Estamos na Rua do Norte, no Bairro Alto, como já estivemos em tantos sítios do mundo.

E não me surge a pergunta inicial.

Apenas a conversa desenrolando-se ao ritmo da tarde morna, o sol alto do meio dia, tempo da sombra mais curta.

Comecemos, se não te importas, apenas por uma reflexão. Tua, claro. E que seja sobre a relação que tens hoje para com Portugal…

Há tempo em que pensamos que é na uniformidade, ou na unicidade, da opinião que está a virtude. Depois vamos amadurecendo. Hoje faço questão que existam certas pessoas que não me apreciam…

Que te sejam distantes…

Escuta. O que faço questão, hoje em dia, é dessa mesma diferença. Que tenhamos posições diversas, por vezes contrárias. Não que as minhas ideias sejam melhores ou piores do que as dos outros… não é disso que se trata.

Há aqui um pormenor que quero introduzir na conversa. Ou um ‘por maior’. Houve um tempo que, aqui, em Portugal estiveste no topo. Foste considerado o exemplo do que deveria ser o treinador português. Vendo bem, representavas o futuro. Sentes isso?

Sinto, claro.

Caramba! Chegaste a ser utilizado por um primeiro-ministro como aquilo que todos deveríamos desejar para o homem português do futuro.

Traduzo isso numa imagem muito simples que é a seguinte: Portugal sente-se muitas vezes na necessidade de se retratar nas pequenas grandes coisas e nas pequenas grandes pessoas. E assim estamos sempre dispostos a dizer que temos a melhor comida do mundo, a maior bandeira do mundo, as maiores obras do mundo. E quando estes acontecimentos têm impacto internacional, o país tende a rever-se e a retratar-se nas personagens que o representam. E isto é perigoso! Em 1989, em 1991, qualquer coisa que eu dissesse era apresentado como uma mensagem messiânica. Até as idiotices passavam. E depois há um preço a pagar. Entusiasmamo-nos, vamos por aí fora, principalmente quando somo novos, imaturos…

Que preço pagaste tu?

Paguei o preço de dizer algumas idiotices que nunca devia ter dito que foram sopesadas não por aquilo que eu dizia mas pelo ambiente ou pela atmosfera que me rodeava. Vê agora o jovem músico, o Salvador. Tem um período de tolerância de três ou quatro meses. Tudo o que diga é sagrado. E, depois, começam a cobrar…É a nossa realidade, o país que temos, as pessoas que temos. Um vírus sebastiânico que desmente a verdade do trabalho, do esforço, de persistência, de competição, de genialidade, em alguns casos. Passei por isso e, claro!, em seguida tive de me emendar.

Emendar?

Isso. Saber aprender a dizer qualquer coisa no momento de as dizer. Mas mais do que isso: aprender  a estar calado quando isso o exigia. Por exemplo: eu nunca fui uma pessoa de exigências ou dependências políticas… Mas sinto que fui catalogado como tal.

Aproveitaram-se da tua imagem?

Sempre fui catalogado como alguém ligado ao PSD. Principalmente, atribuíram-me uma proximidade com o antigo primeiro-ministro Cavaco Silva…

Foste o tal exemplo do ‘Homem-Novo’ do cavaquismo.

Mas, por exemplo, nas presidenciais que opuseram o Mário Soares ao Freitas do Amaral eu, na minha consciência, errada ou não, assumi a minha opção pelo Mário Soares. E isso nunca me catalogou nem como soarista nem como próximo do PS.


Espera! Espera! Deixa-me só dizer isto: Não quero ter a falsa humildade ou usar de uma falta de coragem para vir aqui dizer que esse momento foi um acaso, que caiu do céu. Foi resultado de um trabalho bem estruturado, bem conseguido, de sucesso, com resultados muito positivos para todo o futebol português. Ninguém pode ficar ofendido ou acusar-me de falsa modéstia se eu dizer que aquilo que terá sido alvo de aproveitamento político, na altura, teve por base coisas muito bem feitas.

Sim. Ninguém é duas vezes campeão do mundo por acaso.

E também foi esse trabalho que  permitiu que, nos anos que se seguiram, muita gente, seguindo até métodos diferentes, fizesse com que o futebol português evoluísse da forma que evoluiu. Foi o início de 25 anos de êxito das seleções nacionais.

Achas que as pessoas te reconhecem isso?

Cheguei a um ponto da minha vida que já não me avalio muito por aquilo que as pessoas me dão mas, sobretudo, por aquilo que eu dou às pessoas. Até como treinador. Já não estou tão preocupado com aquilo que recebo como treinador, preocupa-me bem mais o que  posso acrescentar como treinador.

Selecionador do Irão, a despeito de tantos problemas com os quais se tem confrontado, Carlos Queiroz acaba de apurar os iranianos para a sua segunda fase final consecutiva de um Campeonato do Mundo, repetindo, agora na Rússia, o que fizera no Brasil.

Certamente um dos motivos para que se sinta, nele, que vai falando pausadamente, a segurança tranquila de um projeto que avança, com arranques e recuos, mas sem retrocessos comprometedores.

É verdade que, como eu acabei de te dizer, houve alturas que por ser jovem, imaturo, fiz aquilo que qualquer um pouco experiente faz: sentir-se devedor do mundo. Sentimos, de uma forma natural, diria, que merecemos mais salário, mais atenção, mais honrarias, mas essa é a visão egoísta…Essa avidez de receber também sucedeu comigo. 

Achas que os portugueses gostam de ti?

Eu, sobre isso…

Não vais dizer-me que te estás nas tintas.

Não. Não. Isso não. É bem melhor que gostem de mim. Mas, confesso, fico mais preocupado em termos de respeito. Respeito pela minha vida, pela minha personalidade e pelo contributo do meu trabalho. Nessa matéria, sinto que devemos ter a autoestima e estarmos preocupados com essa fronteira. Porque a realidade é esta: quantos anos se passaram sobre  os Mundiais de 1989, de 1991? Estávamos nós a levar a taça para Belém e ser recebidos pelo presidente da República e estava o Vasco da Gama a caminho da Índia. Foi há séculos! Nós hoje temos uma geração de jogadores, de técnicos, de dirigentes e de jornalistas, sobretudo jornalistas, que fazem lá ideia de quem foi o Carlos Queiroz. Repara uma coisa. Quando regressei à Seleção, em 2008, para muita gente era apenas o adjunto do Alex Ferguson.

Deixa-me colocar um ponto cronológico na conversa. Em 2000 falei contigo e era mais ou menos convicção universal que irias voltar nessa altura. Oito anos antes. Que se passou?

Nunca estive muito seguro disso.

Questões administrativas? Políticas?

Também… mas vamos lá ver: eu da primeira vez saí da Seleção nacional numa rutura não apenas administrativa mas também emocional. Muito sensível e complexa.

Algo que já não aconteceria hoje.

Evidente. Com a experiência que tenho, não cairia…

…no erro de mandares limpar a ‘merda’ que havia na Federação.

Bem, bem. Não foi essa a minha expressão. Mas quase.

Certo, a porcaria, vamos lá…

Nunca diria a barbaridade que me saiu da boca depois do jogo de Milão. Mas também, nos tempos que correm, seria impossível ter o Esteves Martins com uma câmara e um microfone ao meu lado no banco a fazer-me perguntas comigo a ferver por dentro. Isto é curioso e tem um contexto. Por que é que me sai a palavra porcaria?

Boa pergunta.

Eu estava com o João Rodrigues no gabinete dele a receber o convite para o cargo de selecionador e a explicar-lhe que não iria aceitar porque não sentia ser a altura certa. Então ele levanta-se i diz – espere aí um bocadinho que volto já. Quando regressou à sala, declarou – fui falar com os jornalistas e garanti-lhes que você é o novo selecionador; agora, se quiser, vá lá dizer-lhes que não.

E daí?

Daí que  a situação que a Federação e a Seleção nacional viviam na altura da saída do Artur Jorge era muito complexa. Podia falar aqui de muitas coisas, mas o tempo também já tornou algumas desinteressantes. Mas eu passei por três presidentes na Federação. E isto numa fase de qualificação. As pessoas conseguem imaginar a instabilidade de gerir uma equipa numa situação com estes contornos? Era um filme medonho. Contratos de publicidade, jogadores dispostos a repetirem a situação de Saltillo, falta de equipamentos… E, mesmo assim, estivemos na luta pela qualificação até ao último minuto e  perdemos com um golo fora-de-jogo do Dino Baggio. Nesse momento estou junto ao banco, de pé, sofremos uma expulsão, fico convencido de que já não há nada a fazer, e viro-me para o Nelo Vingada e digo – se com todas as merdas que nós vivemos e viemos aqui com nove miúdos de 21 anos pôr os italianos aflitos, onde poderíamos ter chegado? Fim de jogo – chega o Esteves Martins. E eu expludo: enquanto não conseguirmos correr com toda a porcaria da Federação!… Mas isto não era nada de pessoal. Não me referia a ninguém. Eram os problemas, as chatices, os entraves. Mas uma barbaridade daquelas hoje era impossível!

Voltaste à seleção uns anos mais tarde. Ainda havia porcaria para correr?

Não! O tempo, entretanto passou. Havia outros problemas, outras questões. Em 2008, quando regresso á federação, estamos no início de uma fortíssima crise económica, havia problemas para resolver com os patrocinadores, mas era um outro mundo. Aí, pessoalmente, abriu-se outro caso: é que eu tinha estado fora de Portugal muitos anos. E, sobretudo, muitos anos a trabalhar em ambientes completamente diferentes. Vim encontrar um perfil de gestão completamente diferente daquele que é típico entre nós, muito mais afetivo.

Sim. Em Inglaterra são essencialmente práticos.

E eu tinha mudado. E os jogadores, os dirigentes, a imprensa, o próprio Portugal também tinha mudado muito. Não fui capaz de me adaptar rápida e facilmente à nova realidade portuguesa. Sinceramente, reconheço  isto sem qualquer tipo de receio, andei um bocado aos papéis.

Por exemplo.

Um bem claro: a federação tinha mudado, era muito mais profissional, mas ainda não ao ponto de  estar preparada para integrar um treinador como eu, vindo de uma esfera diferente, na nova realidade. Quando comecei a ler nos jornais que vinha para selecionador o adjunto do Manchester United, senti que teria sido necessário que a federação tivesse feito um trabalho de explicação sobre quem era, de facto, o novo selecionador. Deveria ter sido re-apresentado ao futebol português como qualquer treinador estrangeiro. Mas quem iria adivinhar que eu, Carlos Queiroz, que tinha trabalhado na federação durante doze anos não iria conhecer o sítio para onde voltava ou que a federação, que me tivera a trabalhar durante doze anos, deixara de me conhecer? Isto apanhou-nos a  todos, de  um lado e do outro, surpreendidos e distraídos. E os problemas começaram a surgir. E há ali aquele momento a seguir ao jogo com a Dinamarca, que perdemos em Alvalade…

Difícil, calculo.

Os japoneses gostam de dizer que só conhecemos uma pessoa quando ela está já um pouco alcoolizada. Eu gosto mais de dizer que, no futebol, só conhecemos as pessoas no momento da derrota. Só conheces verdadeiramente as pessoas quando se perde. E, então, há os tais males que vêm por bem. A derrota contra a Dinamarca e a goleada no Brasil, tornaram-se um livro aberto. E foi a partir daí que, até ao jogo da Espanha, na África do Sul, estivemos vinte jogos consecutivos sem perder.

Foi, pelo que vejo, uma questão humana.

Sim. É sempre uma questão humana!

Percebeste quem estava contigo e quem não estava?

Às vezes não se resume a isso. Estar do meu lado ou não. É uma oportunidade de perceber quem é quem. E como podemos tirar o melhor de cada uma das pessoas. Percebendo com clareza os seus defeitos e virtudes. E, através disso, avaliarmo-nos a nós  próprios como profissionais, como treinadores. É assim que vejo as coisas. Por isso, posso dizer, tranquilamente, que não tenho contas a acertar com ninguém. Fui o que fui, fiz o que fiz. E ninguém que trabalhou comigo poderá dizer que não lhe dei a oportunidade de mudar, de progredir, de passar para um patamar superior. 

Olha, eu tive a oportunidade de traduzir a biografia do Alex Ferguson para português. Não quero exagerar, mas  gasta umas boas páginas a fazer-te elogios. Que significa isso para ti?

São como aqueles campeonatos que  ganhas e que não te dão, exteriormente, os benefícios das grandes vitórias e das grandes honrarias, mas que são os únicos que ninguém te consegue roubar. Aquilo que o Alex pensa dos anos que trabalhei a seu lado, do trabalho que realizei naquele clube, é imutável e é eterno. E eu tenho a sorte de poder dizer uma coisa: o futebol é, por vezes, um universo agreste, egoísta, e eu tenho uma grande maioria de relações que começaram nesse mundo profissional e terminaram em relações pessoais, de amizade, de respeito, de consideração. 

És capaz de dizer qual é o melhor jogador com quem trabalhaste?

Em termos de caráter, de valor desportivo, de qualidade técnica?

Escolhe tu.

Eh, pá! São  tantos os jogadores que me deixam saudades, que foram uma lição de vida para mim… Tive alguns que me ensinaram mais sobre a vida do que aquilo que eu lhes ensinei. Vou dizer um nome, de rompante: Donadoni.

Exemplos ímpares! Outro, na África do Sul: Shaun Bartlett. Recordas-te, certamente, quando fui selecionador da África do Sul…

Como não? Estivemos juntos no Mali, Taça de África, jogaste com o Marrocos do Humberto Coelho.Muitos dos problemas que viria a ter mais tarde começaram a ser cozinhados aí.

Problemas  quer te valeram não ir ao Mundial de 2002.

Problemas socioculturais. Aquilo, no fundo, não foi nada. Eu tinha um adjunto que, por acaso, era de uma cor diferente e que se aproveitou disso para me deitar abaixo e tomar o meu lugar.

Racismo?

Não foi racismo. Conheço bem a história do Jomo. A história racista foi só criada para me sacudirem do banco e levarem à Coreia e ao Japão um tipo que fazia o que queria. Ele era dono do Cosmos, do Jomo Cosmos, e queria levar jogadores do clube dele ao Mundial. Enquanto lá estive, havia apenas um convocado. Ele para o Campeonato do Mundo levou três. Desses três vendeu dois para a Europa e largou a seleção. 

E o Shaun Bartlett…

Era o capitão da seleção sul-africana. Jogou no United. Quando o episódio rebentou, na África do Sul, num ambiente daqueles, o Shaun declarou à imprensa: «If Carlos doesn’t go, I don’t go!». Face à indecência que estava a assistir, tomou essa decisão. E não foi ao Mundial! Esta tomada de posição de um jogador com o qual só trabalhei dois anos é um exemplo do respeito não apenas entre treinador e jogador, mas respeito por ideias, por convicções. E eu, que sempre me recusei a conjugar o verbo ganhar no presente  do indicativo, conheço poucas ou nenhumas demonstrações de companheirismo, de solidariedade, como esta.

Donadoni…

Esteve comigo no Metro Starts. Não estiveste lá comigo?

Não. Aí não.

Pois conto-te. O primeiro homem a carregar balizas, sacos com bolas, o que  fosse preciso, num clube que estava a começar como era aquele, chamava-se Roberto Donadoni. No final dos jogos, reunia-me com a minha equipa técnica para rever uma ou duas questões, e sentia bater à porta da sala. Era ele: «Mister, posso sentar-me aqui com vocês?». Sentava-se, tirava as suas notas, tranquilo, sempre interessado.

Há dois ou três meses, no Qatar, o nosso amigo Jesualdo contou-me uma história idêntica sobre o Xavi.

Esses são os exemplos. Quando se fala nos melhores jogadores do mundo, gosto de analisar o facto por dois parâmetros. Podes analisá-los pelo prisma do entretenimento, do espetáculo, dos resultados. Esses estão nas graças do grande público. Para os agentes do futebol – quais são os melhores? São aqueles que,  pelo conjunto das suas capacidades, deixam de ser jogadores de futebol para passarem a ser o futebol em si mesmo. Eusébio! Eusébio não era um jogador de futebol. Sempre lhe disse: «Tu és o futebol!». São aqueles que transformam o jogo. Muitos são capazes de jogar o jogo; poucos são capazes de transformá-lo. Levar títulos e medalhas para casa, qualquer um consegue. Deixar um legado é  que já não é para qualquer um! E eu tive o privilégio de trabalhar com jogadores brilhantes, brilhantes. Foi uma sorte. Figo, Ronaldo, Zidane, Giggs, Scholes…

….

Espera. Tive até o privilégio de treinar o Eusébio num jogo especial. E ele que antes do jogo começar já me tinha pedido para sair o mais cedo que pudesse, mas como o adversário estava a ganhar, no momento em que lhe disse, «está na hora», ele até se zangou. «Agora não me podes tirar! Como é que ganhamos isto?». Foi num jogo realizado numa cadeia…

Sim. Claro! Vale de Judeus, perto do Natal.

Lembras-te disso?

Ora. Também joguei. Foste  treinador do Eusébio e meu,  o Eusébio que  me perdoe. Um dia extraordinário. Antigos jogadores e jornalistas de A Bola contra a seleção da prisão.

Fantástico! Isso! Com Shéu e o Humberto. E o Romeu. Estavam presos  os Mário Ventura e o Nelinho.

E o treinador dos presos foi o Mário Wilson.

Memórias. Memórias boas. 

Velhas. Volto ao Ferguson. Ele conta que quando tiveste a possibilidade de ir para o Real Madrid falou contigo e terá dito algo como. «Ao Real não se diz não». Foi assim?

Isso na segunda conversa. Na primeira, disse-me que não podia ir, que não devia ir, que aquilo era um mundo de politiquice. Na segunda conversa, expliquei-lhe que tinha aceitado o convite e que ia para Madrid, e pedi-lhe para perceber a minha situação. O primeiro comentário dele foi: «Estou desapontado e triste, fiz o que tinha a fazer para te convencer a ficar». Depois acrescentou: «Mas se não tivesses aceitado eu teria ficado bem mais desapontado contigo». 

E tu, desapontaste-te com o Real Madrid?

Ora. Se eu tivesse a possibilidade de voltar ao Real cem ou mil vezes, voltava duas mil.

Recordo-me de conversas que tivemos em que  me dizias que chegavas aos treinos de manhã e faltavam quatro ou cinco dos craques que tinham ido ao Japão filmar reclamos publicitários.

Isso é verdade. O meu desapontamento, aí, prende-se com o Florentino Perez que, na minha visão, tem três fases no Real Madrid. No início ouvia as pessoas, ouvia os técnicos, ouvia o Jorge Valdano. Depois ganha a Taça dos Campeões e, porque vem de um mundo extremamente agressivo dos negócios, passa a não perguntar nada a ninguém. Decide e pronto! Este episódio aconteceu em Portugal: quando o Florentino comprou 40% ou 45% da empresa de construção ligada ao Espírito Santo, que estudava o projeto de implantação do TGV, matéria em que a empresa dele foi pioneira em Espanha com a via Madrid-Sevilha, entrou na primeira reunião do conselho de administração e sublinhou: «Meus amigos, a partir de agora, quem manda aqui sou eu! Se precisar de alguma opinião da vossa  parte, entro em contacto com vocês». Não tenho motivos para duvidar de quem me contou este episódio.
E eu vou deixar passar esta sem perguntar quem foi. O tal direito às fontes. Cá fico com a minha ideia.
Isto é para exemplificar a forma de estar e de governar do Florentino. Nada mais. É ele, pessoalmente, que escolhe os  lugares onde se vão sentar os convidados do camarote presidencial do Estádio Santiago Bernabéu. E não te admires só com isto: também é ele que decide onde se senta cada um nos voos charters da equipa. 

Complicado trabalhar assim.

Nessa minha fase ele não queria ouvir ninguém. Mas terá aprendido, talvez, após a minha saída, que é importante ouvir quem percebe de futebol. Acho que nem ele nem o Jorge Valdano terão a coragem de me desmentir. Ele repetia de vez em quando: «Carlos, fixa-te no que te digo. Vocês os treinadores só estão aqui para  complicar!». Eu, da primeira vez, comecei a rir. Pensava que era uma brincadeira. Mas o Jorge avisou-me logo: «Olha que ele fala sério! Muito sério!». Mas acrescento algo fundamental: essa minha época foi, também, a época em que o Florentino prometeu levar as contas do clube a zero. Era, portanto, não somente uma competição desportiva mas igualmente uma competição económica. E isso resumiu-se depois à velha máxima: se resultar, tudo bem, se não resultar está aqui o gajo para ser queimado na fogueira. Eu aceitei a política e trabalhei com ela. O problema foi que, no momento de escolher os ‘Pavones’, os jogadores da formação, já não me coube a escolha. E vi-me perante uma série de jovens que não tinham capacidade nem qualidade para jogar numa equipa como aquela. Em seguida houve a guerra da venda do Makélélé. Opus-me até poder. E dizer algo que incomodou muita gente no clube: «Não podemos querer ganhar uma corrida com um Ferrari só com três rodas». O que aconteceu? Vendeu o Makélélé. Empresta  o Morientes ao Mónaco, sem cláusula que  o impedisse de  jogar contra nós, e foram os golos dele que nos eliminaram da Liga dos Campeões. E depois havia um problema com os Galácticos: é  que o clube tinha 50% dos direitos de imagem dos jogadores. E isso era um conflito de interesses. Eu disse-lhe isso várias vezes. 

Sim. O presidente bem pode dizer-te: «Deixe-os lá filmar os anúncios que o seu ordenado também é pago com este dinheiro».

Mas foi isso que aconteceu! Quando se gravou aquele anúncio espetacular dos ‘Gladiators’, as pessoas não sabem mas os jogadores tiveram um período entregue a ‘personal trainers’ de propósito para corresponderem às exigências das filmagens. Isso era absolutamente incompatível com o seu rendimento futebolístico. O Beckham, que era o mais galáctico dos Galácticos, foi um problema também no United. E eu tentei aconselhá-lo: «David, a tua vida não  pode ser só o futebol, compreendo isso; não pode é deixar de ser a primeira das tuas preocupações. Tem de ser a primeira!». Estávamos nós na frente do campeonato, à vontade, nove pontos sobre o Valência, e o Ronaldo, que iria ser Bota de Ouro, lesiona-se a fazer um anúncio para o Pão de Açúcar. Terminou ali a época. Perdemos o campeonato. A culpa foi só da lesão do Ronaldo? Não. Certamente. Também cometi muitos erros. Mas, convenhamos, ter Ronaldo ou não fazia uma diferença dos diabos. Por isso, Afonso, pergunto-te: quantos milhões e milhões e milhões o Real Madrid teve de gastar nestes anos todos para corrigir dois erros terríveis – as saídas de Makélélé e Morientes?

Não te sei responder. Mas agora respondes tu: por que é  que recusaste o Benfica?

Quando o Rui Costa me convidou já tinha regressado a Manchester. E o Alex, nessa altura, pôs-me perante a situação de um clube que tem os seus princípios. Isto já tinha acontecido uma vez, voltei ao United, numa altura até em que estava para entrar no Tottenham, e ele foi muito claro: «Se o Benfica te quer, tem de pagar!». E os números que eles colocaram em cima da mesa não eram compatíveis para o Rui e para o Luís Filipe Vieira.

Se fossem, terias vindo?

Teria. Mas com a cláusula de rescisão que impuseram tornou-se impossível.

Já sentias que  poderia vir a tornar-se no projeto  vencedor que é agora.

Sim. Porque conhecia o Luís Filipe e conhecia bem o Rui. Trabalhar tanto com um como o outro era aliciante. E toda a capacidade que o Rui tinha adquirido até aí far-nos-ia trabalhar no mesmo comprimento de onda.

O no Sporting, o que é  que correu mal?

Olha. Eu acho que no Sporting correu tudo muito bem.

Tirando os golos do João Pinto em Alvalade…

Ah! Ah! Sinto que no Sporting correu bem. Considerei o meu trabalho concluído e estava para a sair após a vitória na Taça de  Portugal, frente  ao Marítimo. Depois… depois foram as circunstâncias. Houve um grande esforço de amigos meus para que continuasse, sobretudo do Reymão Nogueira, Paulo Abreu, Dias Ferreira… Voltei atrás e, como ficou evidente, nunca fui o treinador do Santana Lopes. E dessa forma já não poderia nada voltar a correr bem.

Achas que esse campeonato perdido foi mais obra de um talento individual do que de um trabalho coletivo?

O jogo dos 6-3 foi obra de um talento. Sobre o campeonato  prefiro não fazer comentários. Já lá vai muito tempo. Não adianta nada. Não quero participar das questiúnculas do futebol português. Já tive a minha conta. E por causa disso, tomei a decisão de não voltar a trabalhar em Portugal.

Definitivamente?

Sim! Nunca digas nunca… mas não está nos meus horizontes. Tenho outros aliciantes. Não me vejo a conviver com este linguajar, com este ambiente, com este descrédito que cai sobre o futebol e sobre a sociedade portuguesa. Não  preciso, graças a Deus… e não me apetece.. não quero isso nem para mim nem para a minha família.

Conheço-te há uma bela catrefada de anos, como diz o povo, e sempre te tive como um tipo ponderado, calmo, e da última vez que por cá estiveste, entre 2008 e 2010, vi-te envolvido numas tranquibérnias que me surpreenderam por completo. O Carlos no aeroporto aos gritos com um jornalista? Hummm… Não deve ser verdade… Que se passou contigo, afinal?

Olha, vou entrar por um exemplo da minha infância. Eu gostava muito de montar a cavalo e achava que tinha jeito para aquilo. Um belo dia, meti os pés pelas mãos e dei um trambolhão de todo o tamanho. O Paulo, que era o meu treinador, disse-me  apenas: «Agora sim, estás em condições de ser um bom cavaleiro!». Isto para dizer o quê? Há coisas da nossa vida que não nos orgulham. Mas a verdade é como com o cavalo: ninguém aprende a  montar bem se não cair algumas vezes. O Bolt, essa máquina de correr, é igual a mim e a ti. Aprendeu a andar caindo muitas vezes. Não estou isento de passar pela vida sem fazer asneiras. Essas questões que referes não são, certamente, das páginas mais brilhantes da minha vida, mas há circunstâncias que não conseguimos contrariar. Aqui que houve de bota-abaixo e de violência verbal depois daquela goleada no Brasil não teve qualificação. Aí percebi que precisava de ter um estômago de cimento. Vínhamos de uma fase de vitórias importantes, no tempo do Scolari, muita gente estava mal habituada, mas  também me chamaram para comandar uma nova fase. Não estava a ser fácil, não tenho qualquer orgulho no que se passou, infelizmente tudo se tornou público, mas no caso do Jorge Baptista direi que, de ambas as parte, e também valorizo o comportamento do Jorge, houve  o bom senso para que  não derrapássemos para outras situações mais desagradáveis. E gerimos as críticas que sofremos da forma mais educada que soubemos.

Quanto ao  Luís Horta…

Tenho isso bem arrumado  nas minhas gavetas. Hoje, olhando  para trás, até consigo sorrir de algumas coisas. E confesso-te: foi duro; mas também me deu um certo gozo sair ao intervalo a perder e, no final, como dizia o presidente da Associação do Porto, acabar com um xito no Laurentino, essa brilhante figura do desporto português, e em todos os que o acompanharam. Quando o Tribunal Europeu me deu razão, saí limpo e por cima e a sua decisão derrotou por completo a vergonha em que quiseram mergulhar-me. Um enredo que teve contornos políticos e económicos. Por isso é que o dr. João Rodrigues um dia se virou para mim, num jantar em que as nossas famílias estavam presentes, e exclamou: «Carlos, você vá-se embora daqui. Desapareça! Você não sabe com que gente está metido! Daquilo que eles são capazes!». E eu não sabia a quem ele se estava a referir.

Agora já sabes.

Sei.

Guardo a reserva. E pergunto-te, para terminar, e para te deixar voltar para a confusão do trânsito para lá de Teerão: eras bom guarda-redes?

Não. Mas como era o meu avô que dava a bola, tinha sempre de jogar. Mas enfim eu queria era mesmo jogar a defesa central. Aliás, comecei como avançado, fui recuando no campo até acabar no banco.

Muito bem. Chega-me. Defendeste-te bem.