Bark Psychosis. O pós-rock nasceu aqui

Em 1994, a catarse sem tumulto foi cunhada como pós-rock pelo crítico Simon Reynolds. O fundador: “Hex”, o primeiro abalo dos Bark Psychosis, agora reeditado

Nem sempre as bandas fundadoras têm direito a letra a negrito. Quando se fala no pós-rock, Explosions In The Sky, Mogwai e Godspeed You! Black Emperor estão no pódio da memória e há inúmeros casos de contacto próximo como Sigur Rós, Tortoise, Stereolab e os antecessores Talk Talk.

Se o pós-rock é um corredor por fora do rock, os Bark Psychosis são, também eles, um caso de marginalidade, mas nem por isso menos importante, já que foi graças a “Hex”, de 1994, que se inventou nome para esta catarse sem tumulto. Um tipo de reconstrução roqueira de predominância instrumental, traço vanguardista e ligações à música de compositores contemporâneos como Terry Riley e LaMonte Young.

Em 1994, o conhecido crítico musical Simon Reynolds cunhou o termo na resenha a “Hex” nas páginas da revista inglesa “Mojo”. A expressão foi usada para designar um tipo de rock que não é rock mas também não deixa de o ser. Foram a complexidade da abordagem e a incapacidade de descodificar esta forma de fazer desfazendo (ver caixa) que terão estado na génese do rótulo.

Gravado ao longo de um ano na Igreja de St. John em Stratford (Reino Unido), o processo de “Hex” foi tão demorado que deixou a banda à beira do colapso. Após a digressão de apoio ao álbum, os Bark Psychosis separaram-se, de nada valendo a carga mitológica e o culto crescente instalado em torno do álbum. Adjetivado de “misterioso, assombroso e visionário”, é o manual de um género e de um tempo com elementos exploratórios de dub, drum’n’bass e, claro, jazz. “O futuro do rock parece mais dinâmico do que nunca graças aos Bark Psychosis e ao seu pós-rock”, selava Simon Reynolds, negligenciando quer a depressão americana enviada de Seattle para o mundo, quer o aburguesamento londrino proposto pelo britpop.

“Hex” era tudo menos isso, embora não descontextualizado de gestos de marginalidade em que se inscreviam o shoegaze e a pop sonhadora, as primeiras manifestações de jungle e drum’n’bass e o advento do trip-hop. A música podia ser diferente, mas as intenções eram semelhantes: desestruturar convenções, romper com o instituído e criar novos portais sonoros para as futuras gerações poderem explorar. Foi o caso. O tempo haveria de dar razão aos Bark Psychosis e à mente visionária de Graham Sutton.

Dois anos antes de “Hex” propor esse olhar fundador chegara “Scum”, single de 21 minutos, inspirado por “Spirit of Eden” e “Laughing Stock”, os dois álbuns onde os Talk Talk romperam com a matriz pop de clássicos do futuro do VH1 como “Life’s What You Make It” e “Talk Talk” para reinventarem a música pop com estruturas do jazz e as respirações da música ambiental. Em vez dos habituais refrãos e da busca do universalismo, o papel principal na construção sonora era atribuído ao silêncio e à forma como ele pode servir o som.

Essa era também a folha em branco dos Bark Psychosis. Convém referir que o pós-rock ainda era anónimo mas já estava vivo na “dronologia” dos Velvet Underground – também eles um diálogo entre o rock e a música de vanguarda nova-iorquina –, nos já citados Talk Talk ou em bandas como os Slint. Foi, no entanto, em meados dos anos 90 que se gerou o movimento, chamando uma a geração que iria providenciar os símbolos e a linguagem. Poucos meses depois de “Hex” chegaria “Millions Now Living Will Never Die” dos Tortoise, um dos mais influentes álbuns de pós-rock, que faria de Chicago uma capital não oficial, residência de gente como John McEntire (dos Tortoise) e Jim O’Rourke.

“Dramas sonoros”, definia Graham Sutton ao site The Quietus sobre “Hex” em 2014. Ele que embarcara na aventura em 1986 com 14 anos, seguindo lógicas divergentes das que levam os adolescentes a querer formar uma banda. “Sempre achei a cultura de banda, salas de ensaio e lojas a querer vender material estúpido completamente ridículas e é- -me impossível relacionar-me com isso”, declarou então. “A nossa vontade era criar algo que fosse incrivelmente pessoal e fiel a nós mesmos, com o menor peso possível do ego”, recapitula.

Para chegar a “Hex”, a dieta sonora foi tudo aquilo que se pode esperar e mais. Miles Davis, Nick Drake, John Martyn, The The, The Blue Nile, Public Enemy, NWA, Can, Prefab Sprout, Happy Mondays, Talk Talk, James Brown, Parliament e Funkadelic, Lee Perry, Augustus Pablo, Psychic TV, Kraftwerk, The Sabri Brothers, Steve Reich e David Sylvian contribuíram para essa leitura individualitária e intrincada na ética pessoal. “Partimos de uma ideia de não nos repetirmos”, defendia Sutton, que haveria de seguir carreira como produtor de These New Puritans, British Sea Power, Silver Apples, Jarvis Cocker e East India Youth, além de ser engenheiro de som.

Os Bark Psychosis haveriam de renascer no álbum “///Codename: Dustsucker”, de 2004, mas é provável que as gerações seguintes conheçam melhor os Mogwai, os Tortoise, os Explosions In The Sky ou os Godspeed You! Black Emperor. Já “Hex” é omnipresente nos memorandos e manuais de introdução e explicação do pós-rock. A reedição da Fire Records acontece a 15 de setembro e traz som restaurado.

O que é o pós-rock? Por certo, um novo olhar sobre o rock. Extremado mas sem confronto. Sem as fundações sociais do punk ou raízes no canto de protesto dos blues. Nem os ímpetos dançáveis do rhythm & blues, os excessos do rock sinfónico e progressivo ou a maquilhagem do glam. Música experimental repleta de lava em que o silêncio fala mais alto e a tradição é desestruturada.