O rio pode ser uma iniciação.Seja onde for, qualquer rio.
Em Alhandra ou em Águeda.
«Por quem um rio troca mil cidades», escrevia Adolfo Portela, o poeta de Águeda-a-Linda.
Ou Manuel Alegre: «Rio Águeda que vais/Banhando a verde fragância/Das margens do Nunca Mais/Onde fica a minha infância».
Um rio pode ser uma iniciação. E uma iniciação precisa sempre de quem a escreva.
E precisa de heróis como capitães de areia.
Sentei-me para escrever sobre Baptista Pereira, o homem que dominava o Tejo e que, um dia, resolveu enfrentar o nevoeiro da Mancha que deixa o Continente isolado.
O Quim soberano dos mouchões.
A sua braçada larga, o peito enfunado, vela de galeão de uma vontade de água e liberdade.
Gineto de Soeiro Pereira Gomes, também ele Joaquim, nas letras resolutas de Esteiros.
Em Águeda, o rio era o lugar onde morava a cumplicidade.
E havia também esse homem do rio: o velho Bério que andava para cá e para lá sobre o degrau de cimento que ficava mesmo por cima da Pista 1 a gritar com a sua voz de tenor de cana-rachada, meia-dúzia de rapazolas que se esforçava ingloriamente num «crawl» sem Olimpíadas, as braçadas corrigidas de minuto a minuto.
No tempo da água…
E da insuportável excomunhão da água.
Eu gostava mesmo era de escrever um rio.
Contaria o tempo em que a Lola vigiava furiosamente os atrevimentos adolescentes daqueles que não resistiam ao instinto de espreitar para os balneários das raparigas: a esperança secreta de vislumbrar algo mais do que braços e pernas e cabeças, que era exactamente aquilo que se podia vislumbrar da Pista 3 em diante, o lugar onde toda a gente tinha pé.
Sentei-me para escrever sobre Baptista Pereira, o Homem-Que-Nunca-Foi-Menino.
O Baptista Pereira de Gibraltar: cinco hora e quatro minutos no dia vinte e cinco de Outubro de mil novecentos e cinquenta e três.
O Baptista Pereira do punho cerrado no Portugal-Espanha ditatorial de mil novecentos e quarenta e seis.
O Baptista Pereira vencedor do egípcio Hammad, o Crocodilo-do-Nilo.
Sentei-me para escrever sobre Carlos Miranda, que fez o favor de tanto me ensinar. «Há dez horas de prova. Parece que a vitória, não vai fugir ao alhandrense. Mas entretanto o campeão do Nilo, começa a aproximar-se a aproximar-se…Num ápice, estala o alarme. O egípcio, com uma extraordinária ponta final, está já só a 400 metros…O nevoeiro está implantado sobre a costa inglesa. O barco português não está provido dos meios de orientação. Por erro, em vez de encaminhar Baptista Pereira para Dover, para as rochas brancas de Dover, desvia-o em direcção a Santa Margarida. É mesmo Baptista Pereira que se apercebe do erro, quando vê o barco do egípcio dois quilómetros para lá, a tomar outro rumo…dentro de água, preocupado, nervoso com a corrida…Baptista Pereira, dá instruções para que o rumo seja corrigido…As dificuldades ainda não estão acabadas…surge outra forte corrente, e Baptista é obrigado a um esforço enorme, durante mais uma hora… Hammad não é capaz de vencer o obstáculo, e atrasa-se; novamente mais de duas milhas separam os dois nadadores…Ainda faltam cerca de oito quilómetros…Os últimos momentos são verdadeiramente emocionantes. Alguns amigos de Baptista Pereira, que se tinham deslocado propositadamente de Alhandra, fretam um «gasolina», e vão ao encontro do grande nadador…e caem de espanto quando vêem dois nadadores bem juntos. Seria possível que Hammad…Num desespero rompem todos a incitar o conterrâneo – Força, Baptista! Força, Baptista!…»
Que maravilha! Não concordam?
Queria escrever assim, mas não sou capaz na minha prosa medíocre.
Queria escrever assim sobre o rio; sobre o sol que escaldava nas costas e nos braços; sobre nós deitados debaixo das latadas de uva morangueira.
Um cheiro penetrante impossível descrever; o zumbido das abelhas e das vespas em redor da fruta esbeiçada no chão; um silêncio profundo de sono e de cansaço.
Um aroma grosso a água do rio.
Badaladas, pesadas do sol a pino.
A hora do regresso a casa.
A indolência entornando-se pelo início da tarde.
O pio estridente do melro numa excitação de insectos.
Queria escrever como quem ecoa na quietude melancólica do rio para lá do Fojo e do Sardão e do lugar onde os ciganos se juntavam à sombra dos choupos largos dedilhando sons melancólicos a todo o comprimento das cordas das guitarras.
Escrever sobre os domingos compridos como nunca mais voltaram a ser.
afonso.melo@newsplex.pt