Garden State. O amor pode ser uma coisa muito marada

Drogas, mentiras, uma moto com sidecar e um grande buraco na terra. Uma comédia de iniciação para alguém que há muito devia estar iniciado

Pode uma comédia romântica começar com um sonho de um avião a cair e um homem, deitado numa cama branca de um quarto claro, a ser acordado com uma chamada do pai a dizer que a mãe morreu? Pode, e o protagonista até pode ser um adulto de 26 anos com um armário cheio de remédios e que passa a vida medicado desde os nove anos, tudo porque, acidentalmente, tornou a mãe paraplégica e o pai lhe prescreveu um rol de drogas para controlar a raiva.

É preciso acrescentar que esse jovem adulto viveu num colégio interno desde os 16 anos e nunca mais voltou a casa desde então. A isso se soma o facto de manter com o pai uma relação fria e distante e de este continuar a ser o seu psiquiatra, num claro atropelamento das regras.

“Garden State” parte daí para ser uma comédia disfuncional sobre dois seres disfuncionais que se apaixonam, não por essa disfuncionalidade, mas porque são mais capazes de menosprezar o facto de não se sentirem assim tão integrados no mundo.

“Garden State” – que se refere ao nome pelo qual é conhecido o estado de Nova Jérsia – é um projeto pessoal de Zach Braff, que escreveu o argumento e realiza e protagoniza o filme. Constrói-se a partir da ideia de que nenhuma dor, nenhum medo que a existência nos traga vale o facto de passar por ela completamente alienado. E que, por vezes, há azares que acontecem e nada se pode fazer em relação a isso.

Passado ao longo de quatro dias, no regresso de Largeman a casa para o funeral – vive em Los Angeles, onde é um ator menor de televisão –, “Garden State”é uma espécie de filme de iniciação condensado no pouco tempo em que o personagem deixa os muitos medicamentos que toma e começa a observar e a deixar-se influenciar pelo mundo que o rodeia de forma mais nítida.

Entre essas coisas que o mundo finalmente lhe dá está o amor, o amor por Sam, mentirosa compulsiva que lhe abre uma casa onde se é efusivo, se gosta de animais e as pessoas se tocam e trocam abraços. Ele e o pai mal conseguem falar a não ser da sua condição de saúde e um abraço ou mesmo um aperto de mão estão fora de questão. O amor é uma casa, onde Largeman pode finalmente descansar a cabeça e viver.

À volta giram adereços, personagens, um barco num sucateiro à beira de um buraco na Terra cuja profundidade ninguém conhece (a Falha Kiernan, em Newark, para onde os três gritarão, vestidos com sacos de lixo para se protegerem da tempestade), a velha moto com sidecar, único património que o avô tinha e lhe deixou.

Há também o velho amigo de infância que é coveiro (Peter Saarsgard), vive de esquemas e coleciona cromos da “Tempestade do Deserto” (nome da operação militar contra o Iraque em 1991 que ficou conhecida como Guerra do Golfo) a pensar no seu possível valor no futuro. E outro amigo (Armando Riesco) que comprou uma mansão com piscina no alto de uma colina, onde passa o tempo a dar festas desde que vendeu a patente da sua invenção: velcro silencioso.

Se o filme pode ser uma comédia romântica de iniciação para um homem de 26 anos é porque sabemos que Largeman tem apenas quatro dias de perceção normal do mundo. A ausência dos medicamentos começa a dissipar-lhe a nuvem no cérebro e ele pode, finalmente, aceitar e ser aceite como é – alguém que um dia empurrou a mãe sempre deprimida e esta tropeçou na porta da máquina de lavar, que estava avariada, bateu com a cabeça e ficou paraplégica. A morte da mãe acaba por lhe dar a possibilidade de voltar a viver, de voltar a sentir, de poder amar: e a conversa entre ele e Sam na banheira onde a mãe morreu afogada serve como uma espécie de cuna desse homem a renascer.