Longe. O rosto ao espelho de um homem de coração cansado

Em “Longe”, José Oliveira criou uma obra admirável na sua aparente simplicidade, sempre tão difícil de alcançar, e que deixa claro que a vontade do realizador para continuar a fazer cinema é imensa. 

O tempo avança, a geografia altera-se, novas tecnologias surgem, mas os temas essenciais da existência são quase sempre os mesmos desde que se começaram a narrar as primeiras histórias em todas as culturas do mundo. Uma boa história não é matéria suficiente para dar um bom filme, outros factores relacionados com o uso linguagem do cinema são mais decisivos, são esses que definem a importância de um filme.

Os primeiros planos de “Longe” definem de imediato a estrutura formal do filme: o rigor dos enquadramentos e os longos planos fixos. A acção desenrola-se dentro do plano e não é a câmara que procura a acção em piruetas ou outros efeitos de encher o olho, mas acompanhando à distância o périplo de um homem, de passado desconhecido, no regresso à grande cidade, a lugares, ao encontro de velhos amigos e de uma filha de quem só tinha conhecimento da existência por carta.
Com uma fotografia e som exemplares, mas sem música decorativa a preencher os vazios, apenas o som da água, do vento, do burburinho da cidade, das vozes ao longe ou dos personagens nas poucas falas. Este regresso a um cinema de narrativa linear clássica, depurado e resistente, estabelece um paralelo com o regresso do protagonista, que não sabemos de onde vem, nem as causas da sua ausência, tal como alguns personagens de antigos filmes.

José é o nome do homem que vem de longe. Dos canaviais junto às margens de um rio, apresenta-se de corpo inteiro, como um solitário fordiano que atravessa lentamente um território que já foi o seu em tempos idos.
Durante o caminho, transportando uma mala quase vazia e umas flores na mão, decide fazer uma pausa junto a uma linha de comboios, acenando qual Buster Keaton, quando velozmente passam. Nesta sequência, também se evoca Chaplin num ritual, não de um vagabundo, mas de um digno vencido da vida, quando da mala retira uma toalha onde pousa as flores e da carteira uma fotografia para lhe fazer companhia.

Avança da periferia com destino ao centro da grande cidade, observando com espanto as mudanças desses lugares, como uma zona industrial abandonada e um antigo bairro, onde pergunta a um dos habitantes se vivia ali há muito tempo e obtém como resposta “há tanto tempo que já não me lembro”. À porta de uma casa em ruínas avista a grande cidade ao longe. Já em Lisboa, acelera o passo e os planos são mais curtos, estamos ao ritmo do frenesim citadino. Numa associação recreativa, encontra um velho amigo e na sombra de uma esplanada, diz-lhe “cada minhoto, cada maroto”, esta frase indica uma suposta origem. Acompanham a conversa com uns copos de vinho, num dos poucos diálogos do filme sobre as recordações da juventude, da alegria dos bailes, do encantamento pela vida, do Benfica, e de tudo o que foram os outrora tempos de felicidade. “Como é que um velho com esta idade tem o cabelo todo e tu, uma criança já tás careca com os desgostos da vida…” José depois de ouvir esta frase, levanta-se para “ir mudar a água às azeitonas”, e num magnífico grande plano canta ao espelho uma canção popular do Cante Alentejano que termina com a quadra (também atribuída a António Aleixo), “Se a morte fosse interesseira/ Ai de nós o que seria/ O rico comprava a morte/ Só o pobre é que morria”. Num plano de uma força emotiva de estremecer, o rosto de José reflectido no espelho transmite toda a sua dor e desconsolo de um homem de coração cansado. Este momento deve tudo ao actor José Lopes, há muito tempo que não se via um olhar tão fundo e voz tão sofridos.

O homem que regressa de longe vai passar a noite sozinho, de novo junto ao rio, talvez seja aí que encontre a paz. No dia seguinte, à porta da instituição que recolheu a filha, consegue num quase silêncio envergonhado, perante a senhora que o atende a morada da filha. Emocionado e agradecido diz “…se a vir acho que a reconheço, nunca a vi, nunca peguei nela”.
A noite chega e dirige-se a um café de Bairro, ao balcão vemos uma mulher só, a quem oferece um cigarro, alguns poucos clientes nas mesas, não fala com ninguém, coloca na music box um velho tango, senta-se e escuta deliciado, enquanto fuma, tudo filmado num único longo plano de conjunto, que nos remete para uma cena de café de um filme de Aki Kaurismaki.
Chegamos ao penúltimo e longo plano do filme. José está em frente à casa da filha, vê-se luz numa janela, hesita, mas decide-se, toca à porta e entra. A acção desenrola-se no interior da casa, a câmara encontra-se no exterior, através da janela iluminada assistimos ao encontro entre o pai e a filha.
Neste exacto momento o plano sofre um corte abrupto e passamos de uma plano afastado sobre a casa para um plano de pormenor sobre a janela. Este corte é de alguma forma invasivo, porém simbólico, porque alude ao corte que provocou uma longa separação.
Talvez com outros meios financeiros um longo e lento travelling de aproximação à janela seria uma outra opção do reencontro, até ao abraço de despedida entre os dois.

No crepúsculo urbano, filmado no derradeiro e belíssimo longo plano, José continua o seu caminho solitário, que nos lembra outro crepuscular plano final, este, de um mundo rural, o do actor José Viana a subir uma ladeira no filme de 1993 de João Mário Grilo, “O Fim do Mundo”.
Ambos, filmes e planos inesquecíveis da solidão que se afasta para longe até ao fim do mundo.

Chegados ao fim do filme ficamos com uma certeza, que a vontade de José Oliveira para fazer cinema é imensa. Esperemos que de longe ou de perto venham os apoios que o cineasta precisa para continuar o seu caminho a fazer filmes.

LONGE de José Oliveira
Portugal, 2016 | 36' | HD | Cor | Optec Filmes

“Longe” esteve presente nos seguintes festivais:
– Encontros de Cinema do Fundão, Portugal
– Festival de Cinema de Locarno. Fuori Concurso, Suíça
– BH International Film Festival, Brasil
– Festival Caminhos do Cinema Português, Coimbra