Martim Moniz. A praça que só tem fronteiras para quem lá vive

Noutra cidade podia ser comparado a Chinatown ou Little Italy. Mas as fronteiras abertas do Martim Moniz não dão espaço a categorização. Aqui convive quem vem de fora com quem ainda olha para a praça com os olhos do antigamente. Nem sempre é pacífico, mas é multicultural

Ponto de encontro marcado para as 15 horas na Praça do Martim Moniz. O caminho faz-se a descer pela Rua de São Lázaro e o que encontramos já faz adivinhar o que aí vem.

Os números das portas dividem-se entre os Kebabs Aladino e as diárias de 4 euros, que incluem um prato de bacalhau com natas e sopa. Veem-se lojas que ainda vendem combinações ou sacos de pano para levar o pão mas há outras que enchem as montras de saris e outros conjuntos indianos. Pelos passeios, os que usam o telemóvel para comunicar com quem os entende em línguas quase indecifráveis cruzam-se com os que falam sem precisar de tradutor. “Bom dia menina”, cumprimentam, de mini fresca na mão, quase como num brinde pela audácia de abordar quem não conhecem.

É desta dicotomia entre vida de bairro e freguesia onde convivem dezenas de nacionalidades diferentes que é feito o Martim Moniz. Quem lá vai sabe que em mais nenhum lugar da cidade encontra uma seleção tão vasta de especiarias indianas, mas sabe também que não precisa subir sequer duas ruas para encontrar em cada esquina os clássicos de Lisboa, em forma de fado, ginjinha e petiscos.

E já que falamos em tradição, comecemos pela fila do elétrico, um clássico quase tão lisboeta como o elétrico em si. A meio da tarde a fila tem mais de 40 pessoas e acredite que reportagens anteriores nos dizem que este é um número de sorte. Já agora, fica a dica aprendida com a experiência: para ir de pé há quase sempre lugar e os lisboetas que usam o 28 como transporte podem passar à frente dos turistas que preferem viajar sentados. Afinal, pressa não rima com férias nem numa língua estrangeira.

E onde há turistas há carteiristas, essa sim uma métrica que rima todos os dias. Quem o diz são os números da PSP e os olhos de Luís Sousa que, sentado numa esplanada perto do Hotel Mundial, tem vista privilegiada para os quase 30 assaltos que a PSP regista por dia. “Ainda hoje estava aqui a tomar o pequeno-almoço e vi dois desgraçados a serem gamados sem dar conta”, conta ao i, dando início a um rol de lamentos de quem ainda tenta olhar para praça com os olhos de quem lá nasceu. “Este centro comercial aqui [e aponta para o da Mouraria] era só lojas portuguesas. Agora, valha-me Deus”. E continua a esticar o dedo em redor para apontar os defeitos. “Ali, onde estão os quiosques de comida estrangeira, eram os bancos de jardim onde íamos piscar o olho às meninas na esperança de irem connosco ao bailarico”, lembra.

Os quiosques a que Luís se refere nasceram em 2012, quando a câmara municipal e a empresa NCS – que ficou com a concessão – decidiu transformar a zona de acordo com a multiculturalidade envolvente.

Nesse sentido, nasceram quiosques com “comida do mundo”, que se foram substituindo ao longo dos anos, mas que continuam a oferecer opções que vão do Brasil à China. “Comida chinesa? Só comi na despedida de solteiro do meu filho”, garante Luís, que para a festa dos seus 60 anos já tem mesa marcada “naquele restaurantezinho português ali na Almirante Reis”.

O velho Martim Moniz

É certo que o Martim Moniz mudou. Deixou de ser o sítio onde os turistas vinham a medo e apenas para apanhar o 28 ou o emaranhado de ruas onde ninguém ousava passar a partir de determinada hora.

Mas também é certo que as mudanças levam o seu tempo até se tornarem definitivas e é quase certo que numa tarde passada nas imediações terá o momento em que alguém lhe vem vender droga, o momento em que alguém, descalço, lhe vem pedir dinheiro para comer e em que alguém, à porta de um bar de aspeto mais duvidoso, o convida para entrar. Tivemos oportunidade de fazer check a todas esses momentos, sem represálias às respostas negativas.

Mesmo assim, Margarida pouco se aventura fora da loja onde trabalha há mais de vinte anos. “As caras são estranhas, não dá para falar com ninguém”, conta ao i, lembrando as pausas de almoço durante as quais aproveitava para ir passear nos centros comerciais que ladeiam a praça. “E o cheiro que há lá agora? A especiarias ou lá o que é. Que horror”, lamenta.

Detrás deste balcão de lamentos está ainda Rosa, que recorda as ruas cheias de gente, “mas gente da nossa que agora quase não há”.

José, o patrão, junta às queixas de ter poucos com quem falar às da concorrência “desleal” trazida por quem escolheu a zona para trabalhar. “A mão de obra na China é muito mais barata e claro que conseguem fazer preços mais baixos. Mas a qualidade, essa, não tem comparação”, garante. Com 70 anos, José mantém a loja de revenda de têxteis aberta “mais para entreter”, porque o que entra divide-se na renda de 150 euros que paga à câmara e o ordenado de Rosa e Margarida.

Mesmo assim, não se nega a assumir que, além dos clientes de sempre, são os que vêm de fora que ajudam a manter a casa aberta. “A maioria dos nossos clientes são pretos. Como têm muitos filhos e famílias grandes, é vê-los encher os sacos de roupa para levar para Angola”, conta, mesmo que logo de seguida volte aos habituais queixumes. “Mas até nisso a Primark nos lixa, que fazem mais barato e não nos dá hipótese”.

Os comerciantes de outros tempos são tão raros por aqui que é fácil dar com eles. “O senhor João é outro como nós, que está cá há anos”, explica José, que aponta à direita, para o toldo vermelho d’ “A Caprichosa”.

Tal como esperado, João está lá, cumprindo o horário que mantém há 44 anos. “Entro às 5h para deixar tudo pronto para abrir às 7h e só saio de cá lá para as 20h”, conta.

É ele que faz as bifanas, “a especialidade da casa”, e alguns dos salgadinhos que compõem a montra. Recorda com saudade os tempos em que chegaram a ser quatro a trabalhar. “Agora sou eu e às vezes até sobro”, garante.

João viu fechar o Hospital de São Lázaro, a esquadra de polícia e a vizinha fábrica de confeções que dava trabalho a 200 pessoas. “Parece que não, mas eram serviços que me traziam muita clientela”, diz.

A par do que fechou, João viu também abrir uma série de lojas que lhe fazem a tal concorrência desleal. “É certo que ali nos quiosques o café custa para aí um euro. Eu vendo a 60 cêntimos, mas ali os indianos vendem a 50. Já para não falar da cerveja, que o pessoal compra ali às litrosas para ir beber para a praça”.

Mas João é obrigado a engolir as palavras azedas contra a vizinhança estrangeira quando constatamos que nos 15 minutos que lá estivemos, dos quatro clientes, três eram chineses, dois deles tão habituais que nem precisam de se esforçar para se fazerem entender. João enche-lhes o copo com ginjinha, que bebem num trago com sinal de satisfação. Logo de seguida, há quem não resista a uma bifana. “Com picante?”, pergunta João. “Não. Com ketchup”. João não parece espantado com o pedido, mas quanto a nós, pôr ketchup numa bifana é quase tão grave como maionese num bacalhau com natas.

O novo Martim Moniz

Depois dos lamentos em torno do choque cultural, rapidamente percebemos que é mais o que nos une do que o que nos separa. Diz-nos a canção e a montra do supermercado Hua Ta Li.

Patas de galinha, língua de porco, moelas, pato assado, tripa e orelha de porco fazem parte da lista de pronto a comer deste restaurante aberto há 15 anos numa das esquinas da praça. E antes de olhar de esguelha para estas iguarias, pense no cozido à portuguesa ou nas tripas à moda do Porto e engula em seco. Se eles comem tudo, nós também.

Mesmo assim, Wang garante que a comunidade chinesa continua a ser a sua principal cliente. “Quando abri, não vinha cá um único lisboeta”, conta ao i, podendo justificar com isso a dificuldade que ainda tem em comunicar em português, mesmo depois de 25 anos a viver cá.

Agora, as duas comunidades já se começam a misturar por entre os corredores da loja e são muitos os que lhe pedem dicas de como cozer as massas ou usar os crepes de arroz.

Concluída esta volta à praça, é hora de pousar bloco e caneta e usufruir do que andamos a ver durante a tarde, aqui com a premissa de que, apesar de não sermos estrangeiros, também só cá vimos de visita.

Deixamos o elétrico para outra altura, até porque agora sabemos que os lisboetas têm prioridade no 28 e o Castelo, esse, não sai do sítio.

Provamos açaí na mais recente banquinha do autêntico mercado de fusão do Martim Moniz, usufruímos de uma massagem com influência tailandesa no lado oposto, voltamos ao supermercado chinês para confirmar como se coze a massa de arroz que, na última vez, ficou tipo pastilha elástica. “São só três minutos, que isto não é pasta italiana”, explica quem sabe.

Mas mesmo depois deste “melting pot” de experiências, terminamos com duas certezas: a próxima roupa interior não será comprada na Primark e a cerveja que levarmos para beber na praça vai ser a Sr. João.