Estavam-se nas tintas para a Lei da Gravidade

Oldemário Touguinhó foi, segundo dizem os brasileiros, o maior especialista em Pelé de todos os tempos. Eis uma especialidade engraçada.  É importante que os jornalistas falem de jornalistas. Dos jornalistas do grande jornalismo, como está bem de ver. Os que escrevem com o objetivo de esclarecer e de ser úteis, como dizia Alfredo Farinha, também…

Oldemário Touguinhó foi, segundo dizem os brasileiros, o maior especialista em Pelé de todos os tempos. Eis uma especialidade engraçada. 

É importante que os jornalistas falem de jornalistas. Dos jornalistas do grande jornalismo, como está bem de ver. Os que escrevem com o objetivo de esclarecer e de ser úteis, como dizia Alfredo Farinha, também ele um dos grandes.

Touguinhó não morreu antes de ter estado presente em dez campeonatos do mundo de futebol. Escrevia sobre Pelé e escrevia sobre todos os artistas que o fascinavam, mesmo que não fossem Arantes do Nascimento.

Gostava particularmente de Nijinski, o bailarino: Vaslav Nijinski. Tal como Pelé, Nijinski era um dos mais terríveis inimigos da Lei da Gravidade. Um e outro, pode dizer-se sem medo, faziam questão de desmentir Newton. Ambos subiam ao céu e não se sentiam na obrigação de descer. Que se lixasse essa coisa da matéria atrair matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. De certa forma, amaldiçoavam a maçã.

Touguinhó interessou-se pela personalidade de Nijinski a tal ponto que consultou os registos de um psiquiatra de Zurique que observou o bailarino por mais de uma vez. Descobriu um relatório. Dizia: «Confusão mental de natureza esquizofrénica, acompanhada de excitação maníaca. Colapso na associação de ideias, aliado a um enfraquecimento dos afetos». Diagnóstico: «Incapaz, impotente para a arte».

Nijinski fez com o doutor de Zurique o mesmo que fazia com Newton: estava-se bem nas tintas para o que diziam. E, portanto, voava.

Touguinhó, como todos os bons cronistas brasileiros, escrevia num português esplêndido: «Força e beleza! Rapidez e precisão. A elasticidade e a firmeza no gesto de bailarino. O corpo que gira noventa graus, mantendo o equilíbrio difícil sobre o pé esquerdo, enquanto o braço avança no ar como se impusesse uma direção. O olhar que acompanha criticamente o movimento, e a boca que se abre, finalmente, num sorriso discreto pelo objetivo alcançado».

Nijinski? Não. Pelé.

Pelé viu o pai, seu Dondinho, chorar pela primeira vez quando tinha 9 anos. Foi em 1950. O Brasil perdera a final do Marcanã para o Uruguai.

«A nossa Hiroxima», exagerou Nelson Rodrigues naquele seu exagero inimitável.

«Não se preocupe, pai. Não chore, não. Quando eu crescer vou ganhar uma Copa do Mundo para você», disse Pelé. Ou talvez não tenha dito. Nesta coisas dos mitos há a realidade e a lenda que lhe fica por cima. Deixemos que a lenda ocupe o espaço que lhe é devido.

Oito anos depois, Pelé foi campeão do mundo com o Brasil e só tinha 17 anos.

Aposto que seu Dondinho chorou outra vez, mas não consigo prová-lo.

Nijinski morreu em 1950.

Talvez por causa da sua esquizofrenia, insistia em chocar o público com insinuações sexuais nos seus bailados. Era o artista impossível desafiando a arte. Excitação maníaca…

Oldemário Touguinhó viajou por toda a infância de Pelé, levantando as pedras da memória daqueles que o conheceram desde garoto em Três Corações.

Um dia encontrou Waldemar de Brito, que foi treinador de Pelé quando o rapazinho tinha 14 anos. Ele contou-lhe a história de um golo de calcanhar marcado pelo menino. E que ficara desagradado com a sua insolência. Perguntou-lhe: «Por que não se virou para a baliza para chutar?».

Pelé respondeu: «Não foi preciso. Olhei para a nossa baliza e calculei onde estaria a deles. Fácil».

Por seu lado, o professor Marcos Duarte, resolveu estudar a forma perfeita como Pelé se deitava no ar para chutar a bola por sobre a própria cabeça. Publicou um estudo científico: ‘Biomecânica de um Chute de Bicicleta de Pelé’. Mais uma vez negava Newton.

Enrico Cechetti foi outro dos que desafiava a gravidade com o desplante de um fauno. Um dia descreveu assim Nijinski: «É como um sol do qual brota uma luz intensa mas que não aquece».

Um sol para além do sol.

Em setembro de 1913, Vaslav Nijinski estava no Rio de Janeiro com Romola de Pulszky, uma húngara que viria a ser sua mulher. Cechetti fazia parte dessa digressão. Viveu a vida breve da paixão entre os dois. «Queria que ela aprendesse a dançar porque para mim a dança era tudo», diria Nijinski mais tarde. «Percebi que tinha cometido o maior erro da minha vida. Ela nunca me amou».

No regresso à Europa foi internado num hospital psiquiátrico de St. Moritz. Havia nele a confusão da identidade ilimitada. Era ele não o sendo ao mesmo tempo. Dois anos mais tarde abandonou a dança em público. Deixara-se aprisionar pela Lei da Gravidade.

afonso.melo@newsplex.pt