Albert Royo: “Se o governo aceita negociar o referendo paramos o processo”

Para um dos responsáveis da diplomacia dos catalães, tudo é negociável menos a possibilidade de o povo decidir o seu futuro. Depois de domingo, não haverá marcha atrás. 

Albert Royo: “Se o governo aceita negociar o referendo paramos o processo”

Diplocat é uma espécie de embrião de Ministério dos Negócios Estrangeiros da Catalunha. Nela não participa só o governo, mas a sociedade civil, como, por exemplo, o mítico Barça, e as autarquias. A sua sede é recente e discreta. Apesar de ter morada na internet, nada na porta do edifício indicava a sua existência. Mas a verdade é que, no átrio e no andar, a placa está lá. E tal como os catalães existem, a Diplocat dá os seus primeiros passos.

Conversámos com o seu secretário-geral, Albert Royo i Mariné. O ambiente era de enorme azáfama. Tinham passado poucos dias das prisões de parte de dirigentes e técnicos do governo catalão, e nessa mesma terça-feira, a organização, que não é apenas do governo, tinha recebido a informação de que não podia mexer nas suas contas bancárias.

Madrid e a justiça espanhola congelaram o dinheiro de muitos organismos da Catalunha para sufocar o referendo.

No dia-a-dia, a autonomia da Catalunha está de facto suspensa?

O que sabemos hoje é que nos congelaram as contas bancárias. Não podemos pagar nada. O Ministério das Finanças criou uma espécie de software em que tens de declarar os teus pagamentos, dando a garantia de que nada tem que ver com o referendo. E isso, depois, é validado, verificado, e o governo espanhol coloca um selo de validade. Não sabemos quantos dias pode demorar, mas sabemos que desde hoje [terça-feira] não podemos fazer nenhum pagamento.

Mesmo os salários?

Sim, qualquer despesa. E no nosso caso participamos com bolsas de estudantes catalães em universidades estrangeiras, em que suportamos 50% desses gastos, e isso está congelado, independentemente de quem seja o beneficiário final da transferência. O ministro das Finanças disse que os salários seriam pagos. Mas a verdade é que nesta casa não se pagou o deste mês.

Apesar de não serem uma instituição do governo catalão?

É verdade. Somos um consórcio. Mas temos as contas congeladas. Como, aliás, têm todas as empresas públicas catalãs.

Mas isso não é, na prática, acionar a suspensão da autonomia sem a discutir no parlamento?

Exato. É um art.o 155 sem passar pelo Senado, como manda a Constituição, e estão a aplicar duas coisas ao mesmo tempo: a suspensão da autonomia e o estado de exceção. A sua discussão no parlamento espanhol daria um conjunto de garantias mínimas de onde se encontram os limites. Hoje, com toda esta insegurança e indefinição jurídica, não sabemos quais os direitos básicos e democráticos que temos, e não percebemos até que ponto a autonomia catalã está suspensa. Porque as suas decisões são absolutamente discricionárias.

A comunicação social, os editoriais e os comentadores dizem que isso não é verdade. Que o governo e os partidos independentistas continuam a poder intervir no espaço público e ser entrevistados e fazer conferências de imprensa.

Há estado de exceção porque foram proibidas manifestações favoráveis ao referendo um pouco por todo o país. A polícia entra em meios de comunicação para apreender computadores, para verificar se não têm qualquer relação com o referendo, e os órgãos de comunicação social que publicaram anúncios sobre o referendo sofreram ameaças. Não existem as liberdades mais básicas: o parlamento da Catalunha quis fazer um debate sobre a independência e a mesa do parlamento aceitou-o, mas agora enfrenta uma acusação criminal por querer fazer uma conversa na casa da democracia.

E o que sucedeu aos promotores da consulta popular de 9 de novembro de 2014?

Foram afastados da vida pública durante dois anos. Esta é uma sentença definitiva. E, agora, o Tribunal de Contas decidiu que os ia responsabilizar pessoalmente pelos gastos da consulta. Pediram mais de cinco milhões de euros ao ex-chefe do governo catalão, Artur Mas. Neste momento estão a ordenar o interrogatório de mais de 750 presidentes de câmara, por causa do seu apoio ao referendo, e se eles não se apresentarem são ameaçados de convocação à força e até presos. A isso soma-se a detenção de 15 altos cargos da Generalitat. Muitos estiveram sem poder falar com ninguém durante dois dias e foram ameaçados com multas diárias de 12 mil euros, antes de serem soltos.

Não é impossível garantir que haja um referendo a sério a 1 de outubro?

Estou convencido de que Madrid vai fazer tudo para tentar impedir os catalães de votarem. As condições não são normais, foram trazidos para cá mais de 10 mil efetivos da Polícia Nacional e das tropas paramilitares da Guarda Civil. É evidente que isso gera medo, e um processo eleitoral deve decorrer sem este tipo de ameaças.

Mas não é responsabilidade dos partidos independentistas a forma apressada como aprovaram este referendo? Os estudos indicam cerca de 80% favoráveis ao direito de decidir o seu futuro, mas um número muito menor defende a independência. Essas pessoas não podiam ter sido convencidas a apoiar o processo, como as forças próximas do Podemos?

O Podemos não votou contra. Dividiram–se foi na forma como justificaram esse voto, entre aqueles que são mais críticos ao processo do referendo e aqueles que estão mais de acordo com a maioria independentista. Em relação ao debate da lei do referendo, verificou-se uma desonestidade da oposição.

O debate não foi marcado de surpresa?

Não houve surpresa nenhuma, toda a gente sabia há meses que ele ia existir. O problema é que, se fosse anunciado previamente, o Tribunal Constitucional suspendia-o. E a forma que arranjámos para que o referendo fosse aprovado legitimamente pelo parlamento catalão foi fazer uma proposta de alteração da ordem de trabalhos de modo que a proposta fosse discutida e votada. Não o fizemos em duas sessões porque, obviamente, o tribunal e o governo de Madrid queriam impedir que a maioria do parlamento expressasse essa vontade e criasse a lei do referendo. Era isso que Madrid queria evitar, que a aprovação do referendo fosse feita pela maioria dos deputados eleitos pelos catalães. Não foi o ideal, é claro que teríamos preferido pactuar com o governo espanhol.

Ao prever a indivisibilidade de Espanha e do exército, a Constituição não torna impossível que Madrid pudesse fazer um acordo deste tipo?

Está proibida a secessão, mas não há nenhum artigo que diga que não se pode fazer um referendo.

Mas o referendo não é sobre a secessão?

Sim, mas podia não ser vinculativo.

Para quê fazer um referendo se supostamente não decide nada? Podiam voltar a fazer uma consulta popular.

O que também nos foi proibido. Há várias categorias de referendos: os vinculativos, que obrigam a mudar imediatamente algo, e aqueles que não são vinculativos, que indicam aos cidadãos e aos legisladores a vontade de um povo e a importância de fazerem um caminho para a concretizar. Tirando o referendo vinculativo, já tentámos fazer tudo: uma consulta popular; agora, um referendo não vinculativo; e até um processo participativo. Tudo isto Madrid tentou impedir. Neste quadro constitucional achamos que há margem jurídica para fazer um referendo não vinculativo, mas com força política para ajudar a mudar as coisas.

Esta Constituição foi referendada em toda a Espanha e, na Catalunha, ela ganhou. O que mudou para já não ser aceitável?

Aí viu-se o processo de transição como uma possibilidade de não se ter mais uma ditadura franquista. Para nós era um ponto de partida em relação à qualidade da democracia e à inserção da Catalunha dentro de Espanha. Falava-se de autonomia, mas não de um Estado federal como nós queríamos. Falava-se de 17 comunidades autónomas e não de três nações históricas, como defendíamos. Mas era um ponto de partida que fechava a porta à ditadura, fuzilamentos e exílios. Aquilo que para nós era um ponto de partida, para os setores que desaguaram no Partido Popular (PP) era uma linha vermelha inultrapassável. Estivemos durante 40 anos a apoiar vários governos em Madrid, inclusive do PP, com o objetivo de modernizar e democratizar Espanha, de a preparar para a entrada na União Europeia. Mas mantínhamos o objetivo de avançar com o aprofundamento do reconhecimento da Catalunha no quadro de uma Espanha plural. Há que reconhecer que houve progressos em termos de direitos sociais, como o matrimónio gay ou os direitos de terceira geração. Mas naquilo que diz respeito ao reconhecimento multicultural e multilinguístico de Espanha, fez-se muito pouca coisa.

Qual é a questão de opressão que justifica o crescimento dessa insatisfação nacional?

O momento-chave foi o chumbo constitucional do Estatuto da Autonomia da Catalunha, um acordo aprovado pelo parlamento espanhol e pelo catalão, e posteriormente referendado pelos catalães, que garantia que ficávamos nesse quadro do Estado espanhol, mas que seriam protegidos os nossos direitos. Em 2006, o PP levou o caso ao tribunal, por motivos meramente eleitorais, que excecionalmente aceita pronunciar-se sobre um acordo que já estava estabelecido em várias instâncias. A resolução que sai é muito radical e violenta, e põe em causa a substância da autonomia da Catalunha. Cada vez que tentamos aprovar legislação da nossa competência, se alguém não está de acordo com a orientação política da mesma, recorre ao Tribunal Constitucional, que imediatamente a suspende. Aprovámos uma lei sobre a igualdade de género, por exemplo, que foi suspensa.

Porquê?

Consideram que não temos competência nessas questões. Aprovámos uma lei de luta contra a pobreza energética: suspensa. Aprovámos uma lei que taxa as centrais nucleares: suspensa. Aprovámos uma lei a proibir as touradas na Catalunha.
A autonomia ficou esvaziada. As pessoas da rua que eram federalistas perceberam que Espanha nunca será um Estado federal porque Madrid não quer.

Se fosse possível, recuavam na independência?

Já passaram 40 anos de tentativas. É impossível. Hoje, qualquer acordo tem de passar pelas urnas e por dar o voto aos catalães. Porque o que se rompeu foi um acordo que passou pelo voto das pessoas.
E nessa consulta tem de estar no boletim a possibilidade da independência. Porque em cada ano há milhões de pessoas nas ruas da Catalunha a pedir a independência.

O que se segue? Vão fazer uma declaração de independência unilateral?

Não vou dizer nada, porque se pode passar muita coisa até 1 de outubro. Mas é preciso dizer que há já no parlamento da Catalunha uma maioria a favor da independência.

Mas não é uma maioria de votos.

É resultado de uma maioria parlamentar. Em Madrid dizem que há 48% que votaram nos independentistas e 52% que votaram pela permanência. Isso não é correto. O rigoroso é dizer que há 48% que votaram em partidos independentistas contra 39% que querem manter-se sob Madrid, porque os outros partidos disseram que não se definiam em relação a esta questão.

E não é demasiado grave mudar uma situação que dura há 300 anos, com 50% mais um voto que seja?

Em todo o mundo as coisas decidem-se com 50% mais um voto. Dos 270 Estados atuais, mais de 150 não existiam há 70 anos, todos se autodeterminaram, e a nenhum se pediu, tirando ao Montenegro, uma maioria qualificada. A maioria resultou de processos violentos e, aqui, o que se quer é uma autodeterminação pacífica e democrática. Como Escócia, Quebeque, etc. Estamos dispostos a negociar tudo: as datas, as perguntas e o processo, tudo menos o direito de decidirmos o que queremos. Mas ninguém se apresenta para negociar, só para nos reprimir. Se Madrid dá luz verde para negociar o referendo, nós paramos o processo.