Catalunha: um combate de bandeiras

O nacionalismo espanhol é muitas vezes ignorado, como se não existisse. O processo catalão tornou-o mais visível. Histórias de uma batalha pela hegemonia disfarçada de normalidade, no fim de semana que os espanholistas pretendem tomar as ruas de Barcelona

Já foi ameaçado várias vezes de morte, a última no dia em que falou com o Sol. Jordi Borrás é um fotógrafo e ilustrador catalão, neto de um artilheiro que combateu pela República, que se exilou em França e foi guerrilheiro antifranquista. Tem um livro admirável sobre o espanholismo na Catalunha, PLVS Vultra  – Una crònica gràfica de l’espanyolism a Catalunya.

Este domingo os unionistas defensores da unidade de Espanha vão sair à rua para tentar contrariar o tsunami independentista que tomou as praças e terras da Catalunha. Nas ruas vão estar partidos parlamentares como Ciudadanos e PP, mas também uma série  de grupos e agrupamentos políticos de extrema-direita como Vox, Alternativa Para a Catalunha, Movimento Social Republicano e muitos grupos neonazis. São, aliás, os mais extremistas destes que têm feito, quase sozinhos, a defesa de Espanha una e indivisível nas ruas da Catalunha. Em 3 de outubro, dia de greve geral, quando mais de 800 000 catalães gritavam «as ruas serão sempre nossas», 500 neonazis contra-atacavam à porta de um quartel da Guarda Civil. 

Mariano Rajoy, Filipe VI e o líder dos Ciudadanos falam de uma maioria silenciosa de catalães que quer ser espanhola para sempre, mas que está fechada em casa. Nem as sondagens, nem as votações dão essa certeza: há 26,4% de pessoas que votaram nos partidos assumidamente espanholistas – PP e Ciudadanos –, nas eleições catalãs de 2015; contra 48% de partidos independentistas, como a coligação Junts per el Si e a CUP. No meio ficaram os 9% do ramo catalão do Podemos e os 12,72% dos federalistas do Partido Socialista da Catalunha. 

O livro de Jordi Borrás pretende mostrar por imagens e por textos quem são os 20% que as sondagens dizem que se opõem a um referendo e como este conflito entre o nacionalismo espanholista e os catalães tem raízes não só no sangue como até nas pedras.

Quando passamos pela cidade velha, Jordi fala de uma zona onde, depois dos Borbouns terem invadido Barcelona, obrigaram os seus habitantes a destruir as suas casas pedra à pedra, «para mostrar quem mandava». O livro não é sobre o passado, mas sobre o presente que se joga neste momento nas ruas, mas mostra que em muitos aspetos da sociedade e história catalãs essa guerra continua presente: quando a língua catalã esteve proibida, quando exibir a seynera, a bandeira catalã, era crime. E até nas pequenas grandes coisas, como quando o Futebol Club de Barcelona foi fundado em 1899, seguiu-se rapidamente como resposta a Sociedade Española de Futebol, em 1900, que oito anos depois passou a Clube Desportivo Español, ao qual o rei Afonso XII concede o qualificativo de «Real». No prólogo deste livro, Matthew Tree escreve o seu testemunho: Em 1978, três anos depois da morte de Franco, passou seis meses num país que até há pouco tempo não sabia que existia, a aprender uma língua que até então pensava que era uma espécie de dialeto. Catalunha não tinha recuperado governo próprio e a Guarda Civil comportava-se como se a sociedade catalã fosse toda um ninho de traidores. «Era uma época em que, num bar, um homem disparou contra um televisor, porque pela primeira vez em 39 anos, se podia escutar um político a falar catalão». As ruas estavam ainda ocupadas pelo medo. Os filhos dos homens mais ricos e poderosos do antigo regime circulavam armados nos seus carros e com brilhantina no cabelo, fazendo ondear dos carros as bandeiras espanholas. Na praça central de Vic encontrava-se a sede da fascista Fuerza Nueva, onde estava pendurada uma gigantesca bandeira espanhola. Como por milagre a extrema-direita desapareceu por baixo das pedrinhas da calçada. Segundo Borrás, não foi assim. «Vou dar um dado para que se perceba o que aconteceu com a extrema-direita, um dado de um estudo do Centro de Investigações Sociológicas de 2011, isto é um estudo de um organismo do Estado. Mais de 80% das pessoas que se considera de extrema-direita votou no Partido Popular em 2011. Fizeram o chamado voto útil. O que nem sequer é de admirar muito, sabendo que o PP descende da Aliança Popular, que reunia na sua direção sete ministros do ditador Franco», conta.

Em Portugal, sublinha o fotógrafo, «depois da revolução alguém passou por um tribunal, aqui nunca ninguém foi incomodado com isso». Aliás, recentemente, o juiz Baltazar Garzón quando tentou investigar os crimes do franquismo foi corrido da Audiência Nacional. Mas isso não quer dizer que as coisas não tenham mudado nessa galáxia política. «Até meados de 80, a extrema-direita era muito passadista olhava só para o passado e Franco e não tinha conseguido renovar-se para a nova situação. A Aliança Popular foi muito hábil, com Fraga, conseguiu converter-se no voto útil desse setor. Quem não o aceitou organizou-se numa miríade de organizações, dividiram-se mais do que os trotskistas». Muita extrema-direita «usou a democracia para continuar os seus negócios. Pensam o mesmo, mas atuam útil», garante Jordi Borrás. Várias vezes há tentativas de autonomizar esse setor, que não se reconhece no PP, a última tentativa foi VOX, que teve quase 250 mil votos nas europeias e teve a uma unha negra de entrar em Estrasburgo. Não é fascista, mas plasma da Frente Nacional. «Outro partido a nível catalão que aparece com este propósito é Plataforma para a Catalunha, que é um tentativa de conseguir votos para do catalanismo, mas sendo espanholista. Chega a eleger 60 eleitos locais em 2011, com um discurso islamofóbico». Mas com a crise económica e a erupção do Podemos, por um lado, e Ciudadanos, que nascem na Catalunha, por outro, fazem-na esvaziar. «Aliás na Catalunha, os Ciudadanos surgem como um partido monotemático, ponta de lança do anticatalanismo e pela unidade de Espanha, que atrai, dada a sua novidade, o voto espanholista de direita de esquerda». 

São esses setores todos que vão estar na rua no domingo, quando se multiplicam no resto de Espanha manifestações nacionalistas em reação ao processo da Catalunha. «Estes setores só têm uma coisa a uni-los que é a unidade de Espanha». Até agora, não conseguiram opor-se nas ruas aos independentistas, se a campanha da Assembleia Nacional Catalã (ANC) já levou para as ruas mais de dois milhões de pessoas em 2012, a maior marcha espanholista, no dia de Espanha, em 12 de outubro de 2010, eles não ultrapassaram mais de 30 mil pessoas. Barulhentos de mais para serem silenciosos, e poucos para serem uma maioria. Vamos ver quantos irão à manifestação da Sociedad Civil Catalana (SCC), uma espécie de némesis unionista e espanholista da Assembleia Nacional Catalã.