Ordenou o sorteio que o Benfica, tetracampeão nacional e detentor também da Taça de Portugal, entrasse na edição 2017/18 da prova-rainha do futebol português com uma viagem ao Algarve. Devia ser até Olhão, mas as condições atuais do Estádio José Arcanjo não preenchem os apertados requisitos da Federação Portuguesa de Futebol no que respeita a receber ‘grandes’. Assim, será no moderno – e quase nunca utilizado – Estádio Algarve que vai decorrer neste sábado o Olhanense-Benfica.
Os mais novos pouco saberão sobre o clube de Olhão. Lembram-se que passou umas poucas épocas na I Liga nos últimos anos (entre 2009 e 2014, para ser mais preciso) e, hipoteticamente, conhecem por alto as histórias das guerras internas entre clube, liderado pelo sempiterno Isidoro Sousa, e SAD, que em 2013/14 passou a ser detida por capital italiano – com os benefícios nulos que tal acarretou.
Mas há mais para contar do clube nascido nas margens da maravilhosa Ria Formosa em 1912: estamos a falar do terceiro campeão de Portugal. Não é engano: o Olhanense sagrou-se efetivamente campeão nacional em 1923/24, na terceira edição do então denominado Campeonato de Portugal – prova que viria mais tarde a dar origem àTaça de Portugal mas que grande polémica voltou a causar nos últimos tempos, com a reivindicação do Sporting de que os títulos conquistados nesta competição deviam ser agregados aos da I Liga, nascida em 1934/35.
Seja como for, e porque era essa a designação da então única competição nacional em Portugal, o Olhanense foi, de facto, campeão português em 1924. Na final, derrotou em grande estilo o FC Porto, que tinha conquistado a primeira edição dois anos antes: 4-2. Os portistas tinham um elenco de luxo, com algumas das maiores vedetas do futebol lusitano da época, como Tavares Bastos, Norman Hall, Velez Carneiro ou Alexandre Cal.
Mas o Olhanense também tinha as suas armas e estava decidido a tornar real a tentativa de descentralização do futebol português, já na altura quase completamente concentrado em Lisboa e Porto. Logo na primeira eliminatória tinha mostrado ao que vinha: batera o Vitória de Setúbal, surpreendente campeão de Lisboa, por 1-0. Nas meias-finais, estranhamente, a União Portuguesa de Futebol decidiu que o embate entre os algarvios e o Sporting de Tomar se havia de disputar… em Lisboa, ao invés de ter lugar na localidade de origem de uma das equipas em questão. Não beliscou os homens de Olhão, que despacharam o adversário com um concludente 6-0, perante os aplausos do muito público de Lisboa que se havia deslocado ao CampoGrande para ver o encontro.
Por caprichos do sorteio, enquanto oFC Porto se apurou automaticamente para a final, o Olhanense ainda teve de disputar outra partida para lá chegar. Uma espécie de play-off contra o Marítimo, o campeão da Madeira, que havia ficado isento da primeira eliminatória e da meia-final. Novamente no Campo Grande de Lisboa, os campeões algarvios deram mais uma lição de futebol: 5-1. Só faltava bater o Golias nortenho.
À boleia de Tamanqueiro
A 8 de junho de 1924 jogou-se a primeira final de sempre na capital portuguesa, com o chefe de Estado Teixeira Gomes – algarvio de Portimão – nas bancadas, instituindo assim uma prática que se mantém até aos dias de hoje. De um lado, o poderoso FC Porto; do outro, uma simpática equipa algarvia que entretanto já havia conquistado a admiração do público lisboeta pela qualidade demonstrada no relvado. Tal evidência, aliada à rivalidade que já então se verificava entre Lisboa e Porto, pôs a maior parte do público a torcer para que a Taça fosse para o Algarve.
E assim foi. Logo aos três minutos,Delfino Graça abria o marcador para os homens de Olhão.Norman Hall empatou à passagem do primeiro quarto-de-hora e apenas dois minutos depois, Tavares Bastos consumava a reviravolta, de penálti. Também da marca de grande penalidade, Tamanqueiro voltou a empatar para o Olhanense ainda antes do intervalo (40’). Na segunda parte, só deu Olhão: a superioridade algarvia foi por demais evidente e foi com naturalidade que Gralho, aos 67’, colocou o Olhanense na frente. A cinco minutos do fim, Belo aumentou para o 4-2 final – e mais poderiam ter sido, não fosse a excelente exibição do guardião portista, Borges Avelar.
Após o apito final, a festa teve lugar, no relvado e nas bancadas. O Presidente da República mandou chamar ao camarote todos os jogadores e os árbitros e a todos apertou a mão e felicitou – mas um mais que os outros: Raul Tamanqueiro, assim chamado devido à profissão do pai (sapateiro). O jogador mais talentoso do Olhanense, considerado o melhor em campo na final e que viria mais tarde a transferir-se para o Benfica e a representar a Seleção nacional nos Jogos Olímpicos de 1928, antes de se tornar no primeiro treinador português no estrangeiro (Huelva). Um cancro levou-o da vida precocemente: tinha 38 anos.
Não mais os feitos de Tamanqueiro, Gralho, Belo, Falcate, Cassiano ou DelfinoGraça foram repetidos pelos homens de Olhão. Ainda assim, houve mais uma época de quase-glória olhanense já nos tempos da Taça ‘a sério’: em 1944/45, os algarvios chegaram novamente à final, acabando derrotados pelo Sporting (0-1), de quem são a filial número quatro mas com o qual estavam de relações cortadas há 20 anos, depois da meia-final do Campeonato de Portugal de 21 de junho de 1924/25, que os leões de Lisboa venceram com um penálti no último minuto considerado inexistente por todos os intervenientes. Só quase 57 anos depois, a 25 de fevereiro de 1982, as relações entre os dois clubes foram reatadas.
Hoje, o Olhanense, filho de uma cidade que toda a vida viveu da indústria pesqueira, não almeja a tanto. A competir no terceiro escalão do futebol português, depois de uma época tenebrosa que resultou na descida da II Liga, o clube algarvio tem como objetivo primordial o regresso aos campeonatos profissionais. Mas sonhar não paga imposto e, como lembrou o capitão Daniel Materazzi, «o jogo começa 0-0». «Ainda não perdemos», avisou.
«Jogaremos mais e melhor/Lutaremos com arte e alegria/E sentiremos de novo o ardor/Do renascer da alma algarvia», dita o poema escrito por Eugénia Sousa e musicado por Arcílio Palma para hino do mítico clube de Olhão. Que se cuidem os comandados de Rui Vitória.