Diz-se preguiçosa mas nos últimos meses Ana Bacalhau não parou. No início do ano, estava a fazer os coliseus com os Deolinda, em maio foi mãe e em outubro dá à luz a primeira criação em “Nome Próprio”. A apresentação já tem datas e locais: 26 de janeiro no Teatro Tivoli BBVA e 31 na Casa da Música.
Como nasceu a vontade de ter um “Nome Próprio”?
Quando cantava no quarto, sempre sonhei em gravar um disco. Depois fiz o meu percurso em bandas com os Lupanar e os Deolinda, sem nunca ter dado o nome a um projeto. Os dez anos nos Deolinda foram intensos. Não tinha espaço na cabeça nem era o momento certo porque não sabia o que fazer a solo. Ainda não tinha encontrado o meu universo e só fazia sentido dessa forma. Queria conjugar as influências de música popular portuguesa com a anglo-saxónica. Em 2013, dei um concerto chamado “15” – 15 por ser a idade em que comecei a cantar, e por ter sido aos 30 que passei a viver da música – com as minhas influências principais, de Janis Joplin a Amália Rodrigues. Nesses concertos, comecei a perceber o que é que me servia. A partir daí senti-me mais confiante. Entretanto, fiz o “Mundo Pequenino” e o “Outras Histórias” com os Deolinda e encontrei um momento pacífico para toda a gente. Pedi a autores de muitos mundos diferentes, Disse-lhes que queria cantar-me a mim. As balizas [musicais] foram Fausto e António Variações.
Ser diferente da Deolinda foi deliberado?
Sim, foi. Uma repetição da Deolinda não era respeitar o legado a quatro da banda. A solo, seria sempre uma Deolinda incompleta. Deolinda são quatro pessoas a compor a personagem. Há facetas minhas que não faz sentido mostrar na Deolinda mas que fazem no “Nome Próprio”. Fui à procura da Ana plural. Alguns traços são reconhecíveis. Faz parte de mim. É inalienável. Mas penso que as pessoas vão encontrar outros traços. Uma pessoa mais introspetiva, insegura e a pensar na vida – a segurança do palco vem das minhas inseguranças. E com a música, o processo foi semelhante. Deolinda trabalha as influências tradicionais e eu procurei trabalhar essas e as anglo-saxónicas de uma forma minha. Há cruzamentos mas quando ouço o disco fico satisfeita porque acho que consegui chegar à ideia pretendida e ao disco que tinha imaginado.
O “Leve como uma pena”, escrito pelo Jorge Cruz, fala sobre inseguranças. É um dos temas centrais no disco?
Sim, daí este manifesto ser o segundo single. Há medo, há insegurança, há o não saber se sou capaz. As vozes que nos puxam para baixo e nos fazem duvidar. Mas há aqui uma centelha, uma teimosia e uma tenacidade de me exprimir através da música que permaneceu sempre. No final, a fome e a gana de deitar tudo cá para fora venceram todas essas tempestades. Este disco é um reflexo disso.
O disco surge numa época de intenso debate sobre o feminismo em que, pelo menos na sociedade ocidental, há uma consciência coletiva maior sobre o assunto. Há alguma relação entre o teu particular e o universalismo da causa?
Sim, com certeza. O meu caminho é o de tantas mulheres. É importante referir a questão da sociedade ocidental porque as dificuldades que eu enfrentei são diferentes das mulheres na Índia. Tive dificuldades extra por ser mulher. Na escola era gordinha e chamava-me Bacalhau. As miúdas giras gozavam-me e isso marcou-me. Quando me olhava ao espelho, via uma imagem deturpada e insuficiente. Na altura, não havia Beyoncé nem Jennifer Lopez. Era o tempo das Kate Moss. Não se viam mulheres como eu. Achava que estava errada, tinha vergonha. Essa questão da imagem é muito importante na construção de nós próprios. A liberdade de ação é muito mais complicada para uma mulher. Hoje talvez não tanto mas eu senti. No mundo do trabalho – não necessariamente da música – também senti sempre que seria mais difícil afirmar-me. Na música, às vezes também é um pouco assim. Há quem pense que somos intérpretes e não temos uma voz própria, quando estamos rodeadas de homens. Este disco é uma afirmação do eu e da minha feminilidade. Do eu como mulher e como me defino. O ser mãe foi muito importante. É uma coisa telúrica, ligada à Terra e à criação.
Quem viu os Deolinda desde o princípio, observou a tua libertação crescente. Também sentiste isso?
Senti. No início ia para o palco como quem vai para uma batalha. Sentia-me a domadora do leão. Hoje ainda existe esse medo de escorregar, errar ou dizer alguma patacoada mas não sinto que o palco me vá engolir. É um companheiro. Aquele soalho de madeira já faz parte de mim. São as minhas raízes. Mesmo que alguma coisa corra mal, que me esqueça das letras, isso tudo pode ser usado para fazer de um concerto normal, um concerto especial. Sinto-me livre para ser quem me apetecer ser.
O leque de compositores é plural. Ter pessoas de vários quadrantes quer dizer que há várias Anas?
Sim (ri-se). Há a Ana, a Ana Sofia, a Ana Bacalhau. Amiga, mãe, profissional, sou sempre eu mas em peles diferentes. Quando estou comigo, também tenho os meus territórios proibidos. Aqueles que são só meus e os que quero mostrar. Para chegar a essa multiplicidade de visões e sonoridades, recorri a autores de famílias musicais aparentemente tão distantes. A Francisca Cortesão (Minta), que só tinha escrito em português para o Sérgio Godinho, o Carlos Guerreiro que pega pelo lado surreal, a Márcia, o Miguel Araújo, a Capicua, o Nuno Prata, o Samuel Úria, o Nuno Figueiredo, o Afonso Cruz (o único que não conhecia pessoalmente)…deu-me um gozo tremendo. Acho que me leram bem.
Também escreveste para o disco.
Sim, tenho duas letras com músicas do Janeiro e uma canção minha. Sou muito preguiçosa e não me vejo como autora. O meu trabalho foi unificar, respeitando a identidade do autor, e adicionar a minha impressão digital. Primeiro eu e depois a banda, a quem informalmente chamo de “Os Pataniscas” (ri-se).
Vias-te nestes moldes de Festival da Canção?
Acho que sim, mas no momento certo. Este ano não seria. Mas olhando para este Festival da Canção, faz todo o sentido. A música portuguesa está num momento tão rico e diversificado. Há tantas propostas boas. E é muito importante não olhar apenas às novas gerações mas ter memória das pessoas que já cá andam há mais tempo.
O que é que a Deolinda pensará da Ana Bacalhau em “Nome Próprio”?
É complicado responder pelos quatro mas aquilo que conversamos é que as experiências fora dos Deolinda são muito enriquecedoras a título pessoal e para a banda. Isso faz com que a personagem evolua e caminhe sem medo.