Pinhal de Leiria estava sem limpeza

Gabriel Roldão, investigador do pinhal, já foi chamado pelo Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural. Acredita que a negligência do Estado foi decisiva para o desaparecimento da mata. As estimativas do EFFIS confirmam que pouco terá restado. Depois dos fogos, peritos temem perda de biodiversidade.

O país está de luto e em cinzas. Os prejuízos ainda estão por contabilizar e ainda não há dados finais sobre área ardida O desaparecimento quase total do Pinhal de Leiria é, porém, um balanço unânime nos últimos dias, com operacionais no terreno apontarem para 80% da área ardida. Gabriel Roldão, autor de Elucidário do Pinhal do Rei, acredita que a negligência do Estado nos últimos dez anos contribuiu para este desfecho. E deita culpas ao Instituto de Conservação da Natureza e Florestas: durante anos, avisou o ICNF para a falta de limpeza da mata, «mas nada mudou».

As denúncias e argumentos de Gabriel Roldão, de 82 anos, podem não ter convencido os técnicos do ICNF  – que, segundo o próprio, sempre desvalorizaram as suas palavras por não ser engenheiro e ser apenas um estudioso –, mas parecem ser importantes aos olhos do Ministro da Agricultura, Capoulas Santos, que esta semana convocou o investigador para uma reunião para falar sobre o problema. Como o encontro não chegou para esclarecer todos os tópicos, o ministro voltou a convocá-lo, para uma nova reunião ainda a agendar.

Na base das críticas de Roldão está a investigação que fez para o livro, publicado em março deste ano. Ao todo são 748 páginas sobre a história do Pinhal de Leiria. Além da falta de limpeza, Roldão acredita que o número insuficiente de meios alocados à mata nacional foi determinante. Chegaram a ser 700 trabalhadores e hoje são apenas 18, um número que não tem capacidade para fazer a devida vigilância que a área exige, denuncia ao SOL. Parte do problema deve-se, segundo o investigador, também à passagem da gestão dos guardas florestais para a GNR, em 2008, uma medida do Governo de José Sócrates.

O investigador recorda o Pinhal com especial carinho, a voz embargada e longas pausas para recuperar a fala. E sublinha a sua importância para as gentes da região. «O feriado municipal da Marinha Grande é precisamente a quinta-feira de Ascensão, denominada antigamente como Dia da Espiga, e o Dia da Espiga representa para nós algo muito importante – sair de casa, com a família, para um piquenique no Pinhal. Isto há centenas de anos. E a tradição não morreu. Vai-se continuar a fazer, em cima das cinzas».

O SOL tentou obter um esclarecimento junto do ICNF, mas não obteve qualquer resposta até ao fecho desta edição.

 

443 mil hectares de área ardida

De acordo com dados provisórios nacionais a que o jornal i teve acesso, este mês terão ardido 227 mil hectares, o que duplicou a área ardida até ao final de setembro. Assim, a GNR – que faz o levantamento dos perímetros para o ICNF – aponta para 443 mil hectares dizimados pelo fogo este ano, um valor recorde desde que há registos. Até aqui, o pior ano era 2003 em que arderam 425,839 hectares. As estimativas do sistema europeu EFFIS, que assenta em imagens de satélite e são sempre um pouco mais inflacionadas do que a realidade, apontam para 520 mil hectares ardidos este ano. E adiantam que, destes, 180 mil desapareceram nos fogos do último fim de semana. Segundo o EFFIS, no Pinhal de Leiria arderam 18 000 hectares. 

 

Depois do fogo, as consequências

No mapa nacional divulgado pelo sistema de monitorização europeu, constata-se que a região Centro foi, de longe, a mais afetada este ano pelos fogos. Que consequências ambientais esperar?

«Ardeu uma área bastante considerável», confirma Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas, considerando «deplorável» o desaparecimento do Pinhal de Leiria. «E não foi apenas floresta, arderam também muitos matos. Portanto, as consequências que estes fogos florestais têm para a biodiversidade do país são gravíssimas», afirma ao SOL o investigador. E o problema começa já com a chuva. «As chuvas vão transportar grandes quantidades de cinzas – com elementos que, alguns deles, até são cancerígenos – para as ribeiras e depois para os rios. Além disso, vão arrastar também a parte superior do solo, que levou dezenas de anos a formar-se e é a parte mais rica».

Nas encostas ardidas, continua o investigador, «a água vai deixar de se infiltrar porque deixou de haver vegetação e a água das chuvas transporta o solo, provoca erosão. Essa erosão tem consequências ambientais muito grandes em particular para a biodiversidade, porque a maior parte da biodiversidade está nos solos».

Para Filipe Duarte Santos, é já certo que houve «perdas de populações de espécies». Apesar de reconhecer não ter ideia do número certo de animais que terão morrido, admite que os mais dizimados foram provavelmente «mamíferos, como raposas e coelhos, e muitas aves».

Os dados das autarquias começam a confirmar as previsões. Na terça-feira, o presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital, José Carlos Alexandrino, alertava para o facto de pelo menos 3 mil ovelhas, algumas cabras e 5 mil aves – entre as quais mais de mil perdizes – terem morrido na região. O autarca mostrava-se preocupado em particular com o queijo da Serra da Estrela e as consequências que a indústria poderá vir a sofrer.

Questionado pelo SOL sobre eventuais efeitos no clima a longo prazo, Filipe Duarte Santos desvaloriza. «Isso é uma coisa que se debate muito e provavelmente tem algumas implicações, mas eu não diria que são implicações muito fortes». O especialista em alterações climáticas evoca o exemplo da Amazónia para explicar. «Se pensarmos nas queimadas da Amazónia, em que há anos em que a área ardida é gigantesca, isso conjugado com a desflorestação pode ter consequências sobre o ciclo da água e sobre a precipitação». Por si só, nem tanto. Ainda assim, dados preliminares da Agência Portuguesa do Ambiente indicam que as emissões de dióxido de carbono terão disparado com os fogos dos últimos dias.

 

Portugal, a exceção à regra europeia

Para a reforma em curso, Filipe Duarte Santos deixa um alerta. «Somos o único país do sul da Europa em que a área florestal tem vindo a diminuir», nota o investigador. Entre 1990 e 2015, a área florestal em Portugal sofreu uma redução de 7,39% – em 1990 havia 3,4 milhões de hectares de floresta e em 2015 a área florestal portuguesa correspondia a 3,1 milhões. Nestes mesmos 25 anos, segundo avança o investigador ao SOL, a área florestal espanhola aumentou 33,37%, a francesa cresceu 17,68%, a italiana aumentou 22,44% e a grega registou um acréscimo de 18,31%.

Como se explica, então, a diferença entre esse países e Portugal? Ora, «essa é a pergunta que vale milhões», responde Filipe Duarte Santos. O investigador fala em políticas falhadas e noutras razões diversas. «Aquilo em que penso que há algum consenso no país é que se deve a razões estruturais».

O investigador explica que, no passado, havia uma ligação estreita entre a agricultura e a floresta. Entretanto, porém, o interior do país desertificou-se. «A agricultura passou a ter uma expressão muito mais fraca, e portanto essa ligação entre as pessoas, a agricultura e a floresta desapareceu. A floresta por si só tem um valor económico muito baixo. Os outros países têm sido muito mais bem sucedidos em procurar promover o associativismo de modo a viabilizar economicamente a floresta», conclui. E Portugal pode aprender muito com eles.

*Artigo editado por Marta F. Reis