Adultério justifica violência? Tribunal da Relação do Porto considera que sim

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto “vê com alguma compreensão a violência exercida” pelo marido sobre mulher adúltera

O adultério de uma mulher foi usado como argumento num acórdão do Tribunal de Relação do Porto (com a data de 11 de outubro de 2017, aguarda publicação oficial) para tolerar o crime de violência doméstica pelo qual dois homens foram condenados por violência doméstica.

“É uma ‘revitmização’ das vítimas, uma vez que o Estado tenta enviar a mensagem que as vítimas podem procurar ajuda, e os seus interesses serão defendidos, e depois temos estas decisões que enviam uma mensagem contrária”, diz ao i Ilda Afonso. Estas “decisões devem ser independentes dos juízos de valor e isto é uma forma de ‘revitimização’ que todas as entidades que trabalham nesta área e o próprio Estado português têm lutado para que não aconteça”, acrescenta a diretora técnica o Gabinete de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), no Porto

O caso, noticiado ontem pelo “JN” revela que, com base na prática de adultério da vítima, a mulher em causa foi perseguida pelo amante e agredida violentamente pelo ex-cônjuge, mas estes acabaram condenados com penas suspensas. “O adultério da muljher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (…) e por isso se vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, lê-se em excertos do acórdão divulgados.

“Das duas uma: ou o juiz escreveu isso e isso teve efeito na atenuação da pena ou escreveu isso como considerandos, mas não foi determinante para a determinação da medida da pena”, diz Isabel Moreira, salientando ainda não ter tido ao acesso acórdão e comentando ao i apenas o que foi ontem divulgado.

“Em qualquer dos casos é uma consideração que devia causar um assombro cívico e não apenas da comunidade jurídica, porque evidentemente que um tribunal não pode fazer considerando desses porque está em clara violação, quer da Constituição, quer da Convenção de Istambul”, acrescenta a deputada socialista.

No acórdão assinado pelos desembargadores Neto de Moura e Maria Luísa Abrantes (enquanto adjunta) lê-se que “sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte” ou que na “Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”.

Segundo Ilda Afonso, esta “é uma decisão que não se compreende” até porque “não é uma decisão comum, até porque fazendo referência a crenças religiosas não é algo que se espere de uma decisão judicial”.

Também Isabel Moreira se mostra surpreendida com uma decisão – “que não serve para retratar toda a magistratura, é de um acórdão específico que estamos a falar” – que “tem de receber o repúdio violento da comunidade no seu conjunto”. Segundo a deputada “é intolerável esta valoração moral do comportamento das mulheres em comparação com os homens”. A constitucionalista alerta também que “formação no Centro de Estudos Judiciários no que diz respeito à violência doméstica e à violência de género é fraquíssima”, uma questão que “também tem de ser pensada”.

Julgamento

O Tribunal de Felgueiras julgou o caso e aplicou ao marido, pelo crime de violência doméstica, a pena de um ano e três meses de prisão, que suspendeu, e uma multa de 1750 euros por posse de arma proibida. Ao amante atribuiu, pela violência doméstica, uma pena, também suspensa, de um ano de prisão, mais 3500 euros de multa por crimes de perturbação da vida privada, injúrias e ofensas à integridade física.

O Ministério Público recorreu para a Relação do Porto invocando uma valoração errada da prova e da medida da pena, sugerindo a aplicação de uma mais grave e efetiva pena de prisão.

No acórdão do tribunal superior, os juízes desembargadores argumentaram que “foi a deslealdade e imoralidade sexual da assistente que fez o arguido cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o ato de agressão”.

Reações

Já várias políticos utilizaram as redes sociais para mostrar a sua revolta para com a esta situação. Marisa Matias, eurodeputada do Bloco de Esquerda questiona "por onde começar?".

 

Também a ex-deputada socialista Isabel Moreira considera a decisão "extraórdinária" ao julgar em recurso "um caso de crime de violência doméstica, invoca na argumentalão a Bíblia".

 

 

André Silva, deputado do PAN, utiliza o adjetivo "revoltante Sharia", referindo-se à lei islâmica, para caraterizar a decisão do Tribunal da Relação do Porto.