Mulheres piloto. Quando voar se conjuga no feminino

Em Portugal, apenas 3% dos pilotos são mulheres, mas há quem esteja a tentar inverter a tendência. O i visitou a GAir, a escola onde Neha, Cláudia e Allyana se preparam para assumir os cockpits do mundo 

Há de chegar o dia em que a ligação entre género e profissão deixe de fazer sentido enquanto tema de reportagem. Mas enquanto isso não acontece, damos um empurrãozinho. Não que seja preciso, visto que aqui falamos de motores, de alturas e das mulheres que nos comandam no ar.

Allyana Galasi já terminou o curso e está na escola apenas para aumentar as suas horas de voo. Antigamente, mil era o número-chave para se candidatarem à maior parte das companhias aéreas. Agora, com a falta de pilotos a nível mundial, muitas – como é o caso da TAP – já baixaram esse número para 250. Mas Allyana quer voltar para as Filipinas, de onde é natural, para começar finalmente a voar por si. “Quero estar no comando, talvez por isso nunca me imaginei numa profissão que me obrigasse a estar numa secretária das 9 às 5”, conta. É a única mulher da sua turma, mas esse pormenor só chega a ser tema nesta conversa. “Nem penso nisso, talvez porque nunca me senti diferente dos meus colegas rapazes”, admite.

Mas nesta escola, e apesar dos avanços dos últimos anos, Allyana ainda chama a atenção neste mundo de homens. Dos 300 alunos da escola, apenas 30 são mulheres. Embora o rácio pareça desolador, é já um grande avanço – isto se pensarmos que, em Portugal, apenas 3% dos pilotos são do sexo feminino, ou seja, 4 mil de um total de 130 mil profissionais. 

A escola internacional de aviação GAir, em Ponte de Sor, está a tentar alterar esta equação, até porque existem companhias aéreas focadas em aumentar o número de mulheres no cockpit. A EasyJet, por exemplo, comprometeu-se a chegar a 2020 com uma percentagem de 20% de pilotos mulheres.

Longo caminho Para que não restem dúvidas, da escola de aviação fica a garantia que não há nada que diferencie a qualidade de um piloto em função do género.

“Até é estranho que não haja mais mulheres a pilotar aviões”, repara Neha Mathew, aluna da GAir, lembrando que, no início da história da aviação, o feminino era uma constante. Há 85 anos, Amelia Earhart tornou-se a primeira mulher piloto de avião do mundo e, em Portugal, Maria de Lourdes Sá Teixeira foi a pioneira, isto em 1928. 

Aos 19 anos, Neha pode já não ir a tempo de entrar para a história da aviação, mas é na história da família que quer marcar a diferença. Vem de uma família indiana feita de médicos, engenheiros e, principalmente, de ideais que considera retrógrados. “A primeira coisa que a minha mãe me disse quando lhe contei que ia ser piloto foi: ‘E que vai ser da tua família? Do teu futuro marido?’”, conta. Mas Neha não quer viver em função dos outros. “Quero fazer algo por mim, que faça sentido para mim”, admite, mesmo que, para isso, seja apenas uma das duas raparigas da turma.

Mas, aqui, homem ou mulher, todos têm de passar por um exigente curso de 16 meses, nove dos quais passados a aprender a teoria em 14 disciplinas, para depois passarem à prática e acumularem as horas de voo essenciais para que sejam contratados pelas companhias aéreas.

Cláudia Duarte já tem mil horas passadas no ar. Acaba de chegar de um voo, mas quem quer fazer disto vida não diz que não a mais um. Assume o comando e pergunta: “Vamos?”

Nas mãos de uma piloto Piloto é uma palavra sem feminino e a TAP só criou um uniforme específico para mulheres em 2006. Mas Cláudia nem pensa nisso quando assume o comando do Cessna C-172. Aprendeu a ignorar as caras de espanto quando revela a sua profissão, que já tinha como certa quando, em pequena, pedia ao pai para ir ver os aviões ao aeroporto. “A minha mãe encontrou há pouco tempo um desenho meu, feito na primeira classe, no qual me desenhei a mim, pequenina, a olhar para os aviões no ar”, conta.

Entre espetadora e atriz principal passou-se uma licenciatura em Educação Física que serviria de base segura se alguma coisa corresse mal, um curso de aviação e seis anos como professora na GAir, currículo mais que suficiente para nos levar num voo que não vai além da barragem de Montargil.

Ainda em terra, confere com uma lista na mão se todos os itens estão a ser cumpridos. “Vamos começar a rolar”, avisa, dando assim a certeza de que tudo está operacional. Os ecrãs ligam–se com números indecifráveis para o comum dos mortais, mas que Cláudia lê como se fosse banda desenhada. Já no ar e depois de garantir que não há enjoos a bordo, pergunta: “E gravidade zero? Já ouviram falar?” Sem dar tempo para resposta, levanta a parte da frente do avião ao máximo, para depois a fazer cair a pique. Lembram–se da história dos enjoos? A resposta, agora, seria outra.

Girl power Depois de acumular connosco mais uma hora de voo, Cláudia, atualmente com 32 anos, aumenta a probabilidade de passar finalmente para uma companhia aérea, até porque esta é uma profissão em que a correlação entre idade e horas de voo é valorizada.

Exemplo disso é Valeria Bich que, aos 25 anos, se tornou a primeira mulher piloto da SATA Air Açores.

Enquanto aluna da GAir, ignorava facilmente o facto de ser a única rapariga da turma. Mas nunca o facto de ser mulher se tornou tão evidente como quando passou para o papel de professora. “Havia alunos da Argélia e dos Emirados Árabes Unidos que se recusavam a assistir a aulas dadas por uma mulher”, refere.

Os choques com uma realidade dividida por géneros foram acontecendo ao longo da carreira. No Gabão, país para onde se mudou para trabalhar na Lease Fly, não podia sequer sair à rua sozinha. “Era constantemente abordada, não me sentia segura”, admite. Na primeira oportunidade, voltou para a Europa e garante que, a voar nos Açores, é tão comum receber elogios por ser uma mulher no comando como olhares de desconfiança assim que a vêm no cockpit. “Ainda no outro dia, o tio de um colega meu voou comigo e, antes de levantar voo, mandou mensagens ao meu amigo a perguntar se era seguro”, conta.

É nesta balança entre o ignorar os comentários e agradecer os elogios que Allyana, Neha, Cláudia e Valeria vão marcando território num mundo ainda demasiado masculino. E nenhuma se contenta com pouco. Neha, por exemplo, só descansa quando estiver a pilotar um avião da Emirates. “Na minha família não há dinheiro para bilhetes da Emirates. Quero ser a pessoa que os leva a viajar de graça e comigo a pilotar.”