Sitiados. E o roque foi ao baile popular

Reedição de raro cuidado para os costumes da indústria musical portuguesa, “Sitiados” conta a história de um grupo desde o estágio pós-punk no Rock Rendez-Vous até à nacionalização acidental à conta da “Vida de Marinheiro”. Quando o rock casou com o acordeão 

No princípio eram os Meteoros (como os Meteors). Tocavam repertório local e internacional, em bailes. Dos Sitiados, notícias só em 1987. José Resende (guitarra), João Aguardela (voz) e Mário Miranda (baixo) juntavam-se ao baterista [já falecido] Fernando Fonseca. Participariam numa das derradeiras edições do concurso de novas bandas do Rock Rendez-Vous. O segundo lugar atrás dos Easy Gents (depois Ritual Tejo) era um voto de confiança no futuro. 

A Dansa do Som – editora e agência familiar à famosa sala da Rua da Beneficência – levou os Sitiados a dar uma volta ao país. E entre os dias dos ensaios em casa do homem das baquetas e as multidões a pular ao som da “Vida de Marinheiro” passaram cinco anos. 

Muito tempo no tempo do “para ontem”. O necessário para que uma banda de amigos se divertisse e fizesse a festa até estar preparada para gravar um álbum. “Era uma característica da altura. Hoje, quem quer gravar um disco, grava. Em casa. Na altura, um estúdio custava nove contos à hora”, recorda Sandra Baptista. “Era uma brutalidade”, ri-se à distância. “Gravar só com a ajuda das editoras. Os Sitiados tiveram uma escola antes do disco. Deram muitos espetáculos antes da gravação”, reaviva. A memória é confirmada por José Resende que já só participaria como convidado. “Quando os Sitiados decidiram gravar o primeiro álbum já tinham um repertório de vinte/trinta canções. Então foi feito uma espécie de best of”. 

Os números redondos costumam ser amigos da indústria e o 25.º aniversário de “Sitiados” é o pretexto para recapitular uma história, por desafio da editora. A reedição é mais do que uma operação de resgate de catálogo e passeia pela memória de um grupo, desde as primeiras gravações, ainda em maqueta, registos inauditos de noites endiabradas, a fome e o magnetismo de João Aguardela, e a evolução de um som urbano-depressivo inspirado pelo abandono dos anos 80 e pelo rock do outro lado da barricada dos Xutos & Pontapés para uma pândega de baile popular eletrificado. ”Foi uma manhã”, dessacraliza Sandra Batista. Além das versões definitivas e do prólogo imberbe mas puro de muita delas, está lá tudo: fotografias da época, resgatadas ao arquivo pessoal, e dois filmes. Um pré e um pós-Sitiados para explicar na teoria o que a folia mostra. 

Havia um contexto favorável mas os “Sitiados estavam à frente do seu tempo”, defende. Nados na geração contemporânea ao rock português levavam a cidade a passear ao campo sem vergonha. E em canções como o “Fado da Traição”, João Aguardela revelava uma alma fadista, necessária para compreender o gosto pela música popular portuguesa. “Numa época em que era foleiro gostar de fado”, não esquece Sandra Baptista, a “Sandra do acordeão” eternizada pela “Festa” dos Despe &Siga, decisiva para o roque popular – expressão mais tarde carimbada pelos Diabo na Cruz. “Eles citam-nos como influência”, acrescenta.

Se esta história começasse pelo fim, no princípio era “A Vida de Marinheiro”. O convite irresistível para bater à porta de “Sitiados”. “Um cartão de visita”, reconhece a banda. “A canção que caiu na rua”, recorda João Aguardela no mini-documentário. 

A reedição não só desvenda o crescimento e propagação dessa doença do bem reaviva outra memória. Uma carta de amor inocente escrita por João Aguardela embora popularizada pelos Resistência. Chama-se “A Noite” e não perdeu um pingo de juventude.