De cadáver a remédio: o ‘canibalismo medicinal’ na Europa

Vários remédios eram feitos a partir de partes do corpo humano

Quando lemos a palavra ‘canibalismo’, associamos a práticas tribais ou a comportamentos de pessoas perturbadas, mas a verdade é que, até há bem pouco tempo, os europeus consumiam partes do corpo humano.

De acordo com o livro 'Medicinal Cannibalism in Early Modern English Literature and Culture', escrito por Louise Noble, professora de Inglês na Universidade de New England, na Austrália, carne humana fresca era usada regularmente nos medicamentos criados nos séculos XVI e XVII.

Segundo esta obra – bem como outra chamada 'Mummies, Cannibals and Vampires: The History of Corpse Medicine from the Renaissance to the Victorians', escrita por Richard Sugg, da Universidade de Durham, em Inglaterra – membros de famílias reais, do clero e da comunidade científica ingeriam remédios compostos por ossos, sangue, carne e gordura humana para tratar várias doenças, como a simples dor de cabeça ou a epilepsia.

De acordo com um artigo publicado no site Smithsonian Mag, eram usadas várias partes do corpo nestes medicamentos. Thomas Willis, um cientista do século XVII, preparava um remédio para os acidentes vasculares cerebrais composto por partes do crânio humano e chocolate. Também o rei Carlos II de Inglaterra costumava beber um ‘elixir’ especial feito a partir de parte do crânio humano e álcool.

A gordura humana era usada para tratar mazelas exteriores – alguns médicos alemães recomendavam ‘molhar’ ligaduras na gordura e usá-las para tapar feridas. Para além disso, era também usada para tratar a gota, uma doença associada ao excesso de ácido úrico no sangue.

Quanto ao sangue, este tinha de ser o mais ‘fresco’ possível, pois acreditava-se que continha a energia e vitalidade do corpo que o armazenava. De acordo com Richard Sugg, a população mais pobre, que não tinha dinheiro para comprar remédios, aproveitava as execuções públicas para recolher o sangue do condenado. “Os carrascos eram vistos como grandes curandeiros na Alemanha”, explica o professor universitário. E se preferissem consumir o sangue quente, podiam sempre seguir as receitas disponíveis em alguns boticários, que ensinavam a transformá-lo numa espécie de marmelada.

“Se quisesse curar uma doença da cabeça, ingeria algo com partes do crânio. Se quisesse tratar um problema sanguíneo, tomava algo com sangue. Estas teorias surgiram a partir das ideias homeopáticas”, explica Noble.

Os remédios feitos a partir de restos humanos começaram a desaparecer no século XVIII. No entanto, depois disso, foram encontrados relatos do uso de sangue e ossos humanos em medicamentos: segundo Sugg, em 1847 um homem inglês foi aconselhado a misturar restos do crânio de um jovem adulto com melaço para criar um remédio que ajudaria a curar a epilepsia da filha. Para além disso, “restos de múmias” eram vendidos em catálogos de medicina germânicos no início do século XX.

Hoje em dia, partes do corpo humano continuam a ser usadas na medicina, mas de uma forma completamente diferente: transfusões de sangue, transplantes de órgãos e enxertos de pele fazem parte da medicina moderna e ajudam a curar milhões de pessoas em todo o mundo.