O paradoxo da galinha

Jogando como ponta direita, Juan Manuel Fangio tinha a velocidade inata dos que dominam os volantes…

Há vários anos, em São Tomé, eu conduzia um jeep meio desconjuntado em plena escuridão ao longo da estrada que liga a Praia do Micondo à Ribeira Afonso. Talvez surja algum iluminado a descobrir nesta frase alguma conotação racista, mas a verdade é que eu na altura precisava de qualquer espécie de iluminação. Atravessei aldeolas sem um pingo de luz que não fosse a do luar. E as aldeolas surgiam de surpresa nas curvas da estrada cheias de gente na beira do caminho, negras como a noite. De repente ouvi um grito: «O branco matou a galinha!» O branco era eu. A galinha atravessou-se na minha frente e ainda bem que não passava de uma galinha.

Sou um crente no Paradoxo de Sampetersburgo: «O valor de um objecto deve ser determinado em função da sua utilidade e não do seu preço».

Não imagino sequer o valor de uma galinha naquele lugar entre a Praia do Micondo e a Ribeira Afonso.
Calculo que a sua utilidade morta seja maior do que viva, ovos à parte.
Não parei para saber do estado do galináceo.
Talvez houvesse um ou outro menos agradado com a minha falta de destreza na condução de um jeep todo desconjuntado. Não sou nenhum Fangio.

Era aqui que queria chegar: Juan Manuel Fangio.

13 de julho de 1930. Campo desportivo Plaza Oeste, em Ayacucho, Argentina. O Atlético de Ayacucho preparava-se para enfrentar um dos seus rivais das proximidades, o Club Ferroviarios de Balcarce.
O povo, em volta do rectângulo, estava decidido a não perder pitada.
Até porque havia uma figura elegante, esguia, que suscitava atenções, sobretudo femininas.
Tinha uma alcunha: El Chueco. Ou seja, O Ladrão.
Nessa tarde, os Ferroviarios de Balcarce alinharam desta forma: Fiematt; Alonso e Realli; Guangiro, Li, Papa e Juno; Fangio, Bergara, Boti, Castillo e Cavalotti.
Fangio era El Chueco.
Juan Manuel Fangio.

Os Ferroviarios tinham tido outro nome: Rivadavia.
Na primeira prova na qual participou como piloto, Fangio deu-se a conhecer como Rivadavia.
Ainda não era Fangio.

Dizem os jornais da época que El Chueco se destacava como ponta direita velocíssimo. Não precisava de volante para explodir como um Fórmula 1 por entre as defesas adversárias.
Havia nele a febre da rapidez. Um vício, se quiserem.
Stirling Moss foi, provavelmente, o maior adversário de Fangio nas pistas. Contava: «O mais curioso é que ele tinha as pernas muito tortas, em forma de arco. Eu ficava espantado com a sua capacidade de dominar a bola. Era extraordinário!».

Aos 17 anos já tinha passado por vários clubes diferentes, do Alem ao Mitre.
Mas a sua cabeça funcionava como uma máquina.

Em 1929, apaixonou-se definitivamente pelos automóveis.
Em breve ganhava provas: com o nome de Rivadavia.

Aceite-se: Juan Manuel Fangio tinha uma dívida com o Destino e o Destino não deixa de cobrar as suas dívidas.
Por muito que gostasse de futebol, por maior que fosse o prazer de sentir a bola nos pés e partir com ela em desfilada de encontro às hordas de adversários, coube-lhe ser o piloto mais famoso de todos os tempos.
Fangio e os volantes confundem-se.

As suas pernas arqueadas foram mestras na arte dos travões, aceleradores e embraiagens.
Disse um dia: «Depois de ter cumprido o serviço militar, recebi um convite para ir jogar em Mar Del Plata. Era tentador. Eu sabia que na minha terra não podia evoluir como jogador. E gostava de desporto. Qualquer modalidade. Também joguei basquetebol. Depois tive de desistir para me dedicar aos automóveis».

Os argentinos são gente com o coração ao pé da boca. Basta escutar Mi Buenos Aires Querido na voz de Gardel. Ou aquelas canções lavadas a whisky que Piazzola pôs na boca de Amelita Baltar.

Fangio e Di Stéfano foram amores pelos quais a Argentina chorou. Houve quem os comparasse: precocemente calvos, tardiamente campeões. Às vezes, a gente esquece-se e a história também: Fangio foi cinco vezes campeão do mundo mas entre os 40 e os 46 anos. E Sterling Moss, exclamava, comovido: «Muito do que aprendi com ele foi conduzindo atrás dele. Ele tomava a dianteira, porque era o melhor, e nós seguíamo-lo atentos à forma como guiava. Eram verdadeiras lições».

Talvez Juan Manuel Fangio não tenha ensinado ninguém a jogar futebol. Disparava pela direita, ultrapassando adversários. Tinha em si a verdade imutável do paradoxo: e não tinha preço…

Estou certo que, ao contrário de mim, naquela noite africana entre a Praia do Micondo e Ribeira Afonso, não mataria a galinha. Tinha mãos demasiado firmes para assassinatos de pacotilha. 

afonso.melo@newsplex.pt