José Miguel Trigoso: “É preciso melhorar o transporte público. Quanto menos transporte individual, menos sinistralidade”

Globalmente, 2017 foi um ano pior do que o anterior nas estradas portuguesas. O presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa fala com o i sobre as causas

Com a chegada do novo ano, impõe-se um balanço do anterior, especialmente quando os números são piores. Ao i, José Miguel Trigoso, o presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa – associação que se dedica às campanhas de sensibilização e análise da sinistralidade rodoviária no país -, avisa que o problema com os motociclos pode não ser passageiro: as motas parecem estar a tornar-se um meio de transporte cada vez mais atrativo para os portugueses.

Houve um aumento global em todos os indicadores de sinistralidade rodoviária neste ano que passou. Como olha para este balanço? 

Desde há três ou quatro anos que a queda da sinistralidade praticamente parou. Aliás, não é uma questão só portuguesa, praticamente em toda a União Europeia e noutros países da OCDE tem acontecido isso. Em Portugal, continuou a baixar até ao ano passado, basicamente a cair o número de mortos – que é o mais visível. Em 2017, também esse indicador subiu. O aumento de mortos no local do acidente até à entrada para o hospital, se compararmos esse número com o de 2016, há um aumento de cerca de 14,5%. É muito.

Como pode ser explicado?

Não temos os dados do ano todo, mas temos alguns dados já disponibilizados até outubro e o que acontece é que não houve aumentos no número de mortos em quase todo o tipo de utentes. Há só mais um peão morto, não houve aumentos de vítimas mortais a operar veículos ligeiros, pesados e bicicletas, e quanto aos ciclomotores houve até menos utentes a perderem a vida.

A exceção são as motas.

Há um aumento enorme, sim. Houve um pequeno aumento também, embora significativo, do número de mortos a operar ‘outros veículos’ – tratores agrícolas, quadriciclos, etc.. Quanto aos feridos graves, a situação é a mesma – o aumento do número de feridos graves deve-se exclusivamente aos motociclos. Aliás, tirando no caso dos motociclos, até tinha havido uma ligeira quebra: menos dois. Quanto aos feridos leves, houve um aumento global de cerca de 6% em todas as categorias. Contudo, houve um maior aumento nos feridos leves a operar motociclos – pelo menos 20%.

E como vê esta maior ocorrência de problemas com motociclos?

O número de sinistros aumentou e o número de mortos e feridos graves também, mas são todos devidos ao aumento de motociclos em circulação. Além disso, esses indicadores sofreram maiores aumentos dentro das localidades, e os utentes pertencem na grande maioria a faixas etárias entre os 30 e os 40 anos e entre os 40 e os 60. E essas são as faixas etárias em que se nota precisamente mais transferência de mobilidade, são pessoas que estavam habituadas a andar de automóvel e que compraram também uma mota.

O que estará a levar as pessoas a andarem mais de mota?

Sabemos que o número de vendas dos motociclos aumentou muito. Uma das razões que algumas pessoas admitem é o facto de as pessoas com carta de ligeiros poderem conduzir motociclos até 125 cc. Mas isso tem uns nove ou dez anos, por isso não acredito que seja essa a razão. Não temos dados concretos sobre o volume de circulação de motociclos em 2017, mas há um conjunto de circunstâncias que têm sido apontadas e o fomento dos motociclos pode ser explicado pela maior rapidez, comodidade em termos de estacionamento, menores gastos em combustível… além disso, houve muito bom tempo este ano. Há dois tipos de pessoas que usam os motociclos – motards, que andam sempre de mota faça chuva ou sol -, e pessoas que têm automóvel e que levam a mota quando o tempo está bom. Com o tempo que fez este ano, com pouca chuva, provavelmente terá havido muito mais circulação de motociclos porque as pessoas tiveram muito mais oportunidades para o fazer.

Este aumento de vítimas em 2017 terá sido uma exceção?

Não. A tendência é continuar a haver uma grande circulação de motociclos, por questões de mobilidade e pelas vantagens de ser mais rápido, mais barato e menos poluente. Ao mesmo tempo, em termos de sinistralidade, o risco é muito maior. É preciso por isso ter muito cuidado na conceção e na construção da infraestrutura rodoviária, que devia ser sistematicamente sujeita  a auditorias de segurança e a inspeções de segurança, cujos resultados fossem públicos. Por outro lado, é preciso fazer uma alteração muito significativa na formação, com caráter de absoluta obrigatoriedade para todos os condutores de motociclos. É também preciso fazer-se ações muito específicas e bem adequadas ao público-alvo, em termos comportamentais, dirigidas a todos os tipos de utentes, para que haja uma convivência sã com os motociclos e entre todos os tipos de veículos. Além disso, é preciso melhorar muito o sistema de transportes públicos, porque desvia muita gente do transporte individual e aí consegue-se uma redução da sinistralidade rodoviária muito acentuada. Quanto menos pessoas andarem com transportes individuais, menor é a sinistralidade, pelo menos na utilização diária casa-trabalho, casa-escola, que é onde está a maioria dos acidentes.

Mas há outros problemas para além dos motociclos…

Sim. Não podemos cingir-nos só aos motociclos – os números relativos aos outros veículos também não melhoraram. Por exemplo, o problema da distração, por causa do telemóvel, é um problema que tem um impacto verdadeiramente brutal na sinistralidade e que tem sido a principal causa da sua não redução. Até há três ou quatro anos estava a conseguir-se a nível europeu e nacional apontar reduções muito significativas, de 50% em cada década, e desde aí parou. E a única coisa que se alterou foram os telemóveis. Portanto, tem de se tomar decisões muito fortes e rigorosas em termos globais em relação a isto.

Considera, como algumas pessoas, que estes aumentos na sinistralidade rodoviária podem estar relacionados com a recuperação económica?

Alguns estudos indicam que quando a sociedade está deprimida, para o mesmo volume de circulação de trânsito, a sinistralidade diminui. Quando a sociedade está mais alegre e aberta, para o mesmo volume de circulação de trânsito, a sinistralidade tende a aumentar. Isto tem que ver com os riscos que as pessoas estão dispostas a assumir, que variam de forma irracional – quando estão deprimidas, as pessoas são mais cautelosas, e na estrada essa atitude não é exceção.

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, apontou três problemas principais em 2017: atropelamentos, álcool e motas. Diria que estes são os pontos principais a trabalhar no futuro?

Relativamente às motas, não tenho duvidas nenhumas. Ao álcool também não: 30% dos condutores que morrem em acidentes de viação têm taxas de álcool no sangue ilegais. O problema do álcool é brutalmente grave. Por isso sim, concordo que seja uma prioridade, principalmente nas taxas de álcool mais elevadas que uma pequeníssima percentagem de pessoas acusa durante a condução, mas que resultam praticamente em 20% dos condutores que morrem. Para isso, aliás, já propusemos variadas vezes a introdução, particularmente nos casos dos condutores reincidentes, de um bloqueador no veículo e de um conjunto de ações de formação e tratamento. Se as pessoas não aceitarem isso, não conduzem.

E em relação aos atropelamentos?

Quanto aos atropelamentos, é um facto que temos uma taxa mais elevada do que a média da UE, mas não é desproporcionalmente mais elevada do que as outras. Ou seja, a percentagem de peões que morre no âmbito global é mais ou menos a mesma. Eu diria que estou de acordo, mas ia mais longe: os peões morrem quase todos no interior das localidades e aí há um problema gravíssimo de sinistralidade. A média do número de mortos dentro das localidades na maioria dos países anda pelos 25% ou 30%. Em Portugal, é mais de 50%. Por isso, tem de haver uma ação global no interior das localidades, com projetos viários, normas rígidas e soluções concertadas em todos os locais, e não diferentes de câmara para câmara. Deve, também, haver auditorias públicas nas infraestruturas rodoviárias das localidades. Espero que o atual ministro da Administração Interna pugne por isso. Estou convencido de que vai fazê-lo, até,  porque o ouvi a falar de uma maneira diferente e gostei da maneira direta como falou, pôs o dedo em algumas feridas.

E como olha para a Carta Por Pontos?

Quando este sistema de pontos entrou em vigor, nada se alterou em termos de conceção do sistema. Em vez de se dizer que três contraordenações muito graves ou cinco contraordenações graves e muito graves levam a processo de cassação, atribuem-se pontos a essas contraordenações e no fim dos 12 pontos o condutor leva o processo de cassação. Contudo, o sistema tem um mérito: é que os crimes rodoviários foram incluídos nesse processo de cassação. Consequência disso é que teve de ser feito novo registo individual de condutores, porque as infrações cometidas a partir do dia em que entrou em vigor este modelo deixaram de poder somar às outras. Ou seja, as pessoas – que eram já 15 ou 20 mil – que estavam em vias de ser sujeitas a processos de cassação, se não fizeram mais nenhuma infração, partiram outra vez do zero. E isso é asneira, porque as pessoas sentem que há uma despenalização.

Vê outros problemas no sistema?

O sistema em si tem um conjunto de disparates. Por exemplo, um condutor que não seja condenado por nenhuma infração grave ou muito grave num período de dois ou três anos, é premiado com mais três pontos – se tiver 12, passa a ter 15. O que quer dizer isso? Que a partir daí vai poder cometer mais infrações. Isto é uma idiotice, que foi aprovada por unanimidade. Outro erro é que alguns condutores só recuperam os pontos ao fim de três anos de ter cometido a infração, enquanto outros recuperaram-nos ao fim de dois anos – é o caso dos condutores de veículos de transporte de mercadorias, transportes públicos, veículos de emergência, transporte de crianças, que têm muito mais responsabilidade do que os outros condutores. É outra coisa completamente idiota. Há uma série de coisas que não fazem sentido. Neste momento, o sistema está bastante inoperacional e, ao fim de um ano, li declarações feitas na Assembleia da República segundo as quais tinha havido 15 mil e tal pessoas que tinham perdido pontos.

É pouco? 

O número de autos levantados por infrações que deviam ter levado à perda de pontos terá sido entre 30 e 40 mil, no mínimo. Se só houve 15 mil e tal pessoas a perder pontos, eu pergunto: o que é feito das outras? Com o novo sistema, há um claro atraso nos processos, o que é muito mau, porque é importante que um processo levantado tenha efeitos rápidos, uma vez que é a forma de fazer pressão em termos comportamentais. Neste momento, o que há é um sentimento de impunidade.

Concorda com a tolerância zero em relação ao álcool que está em reflexão na UE para recém-encartados?

Acho que não é a prioridade, é perdermos tempo com uma picuinhice. Penso que o álcool é um problema muito importante, mas devemos definir prioridades e a nossa não é essa, são as taxas de álcool elevadas. Até porque os recém-encartados – jovens, na sua maioria – nem são, pelo menos no caso português, os principais infratores em matéria de álcool. Baixar de 0,2 (o limite atual português) para 0,0 é dizer assim: “se tiveres uma refeição boa, nem uma imperial podes beber”. Deixem-se de parvoíces. Acho que isso na prática não vale nada.