Fizz. Um novelo cheio de nós

Arguidos, incluindo o magistrado  alegadamente corrompido, dizem que acusação do Ministério Público passou ao lado dos principais beneficiários do esquema. Procurador diz que não faz sentido levar novos dados a julgamento, mas PGR garante ao SOL que já estão a ser analisados.

Fizz. Um novelo cheio de nós

O processo que envolve o antigo vice-presidente de Angola e o ex-procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal é cada vez mais um caso singular na Justiça portuguesa – não apenas por visar um ex-governante de outro país. Desde que foi deduzida a acusação e ficou a saber-se que a chamada Operação Fizz ia mesmo chegar a tribunal, alguns dos arguidos – nomeadamente o ex-procurador Orlando Figueira e o advogado Paulo Blanco – decidiram mudar as respectivas estratégias de defesa e contar versões que colidem com a da acusação, trazendo para o centro do alegado esquema de corrupção outros personagens importantes da vida pública portuguesa e angolana. Em causa estão particularmente os nomes do banqueiro Carlos Silva e do advogado Daniel Proença de Carvalho – cujos, apesar das referências no processo, nunca foram constituídos arguidos, nem, consequentemente, foram acusados.

O procurador de julgamento, porém, já deixou claro que não concorda que em sede de audiência de julgamento sejam analisados todos os novos dados recentemente revelados pelos suspeitos. 

Não obstante este entendimento do representante do Ministério Público no julgamento, a Procuradoria-Geral da República (PGR) garantiu ontem ao SOL que tudo será apreciado pelo tribunal de julgamento e que do lado da PGR já começou o trabalho de recolha de novos elementos e de ponderação dos mesmos.  Mas o cerco por parte dos arguidos a essas outras pessoas de quem dizem que a investigação passou ao lado também está a apertar-se.

No final de dezembro, a defesa de Orlando Figueira pediu ao tribunal que fosse assegurada a presença física de Carlos Silva em julgamento e o advogado que representou em diversos processos o Estado angolano e que é arguido neste caso, Paulo Blanco, já reforçou que as declarações iniciais do ex-procurador alegadamente corrompido foram dadas contra a sua vontade «para alegado benefício de terceiros intervenientes».

As duas defesas estão alinhadas na interpretação de que o beneficiário do alegado esquema não foi o acusado Manuel Vicente, mas sim o banqueiro que está apenas arrolado como testemunha Carlos Silva, sustentando até que fora este quem se encontrou com o antigo procurador e lhe prometeu um trabalho quando este saísse do MP (Orlando Figueira pediu uma licença sem vencimento em 2012 para passar a consultor).

As mudanças de estratégia 

O advogado e arguido na Operação Fizz Paulo Blanco foi o primeiro a entregar uma contestação, em novembro do ano passado, na qual punha em causa a tese da acusação, com novos dados e apontando suspeitas graves a Carlos Silva e Proença de Carvalho: «O MP sabe – e tem elementos no processo que o demonstram – que não perseguiu quem ‘podia’ perseguir, infletindo no sentido de arquitetar uma versão dos factos que nada coincidiu com a realidade».

O volte-face na defesa do ex-procurador Orlando Figueira, alegadamente corrompido por Manuel Vicente, foi ainda assim o momento mais importante, dada a centralidade do magistrado no alegado esquema – suposto corrompido. Assim que deixou de ter como advogado Paulo Sá e Cunha, o antigo magistrado assumiu que a sua saída do departamento que investiga a criminalidade economico-financeira mais complexa aconteceu após ter negociado um trabalho com o banqueiro angolano Carlos Silva – vice-presidente do Millennium/BCP e presidente do Banco Privado do Atlântico.

No requerimento recentemente entregue no Juízo Central Criminal de Lisboa, Figueira afirmou que até hoje não tinha contado o que se passou para respeitar um «acordo de cavalheiros» que tinha feito com  Daniel Proença de Carvalho, garantindo que, em troca, este advogado (que fazia uma ponte com terceiros) lhe prometeu um emprego no futuro e o copagamento das despesas da sua defesa, no âmbito da Operação Fizz. O documento foi feito pelo próprio procurador, numa altura em que ainda não lhe tinha sido atribuída uma advogada oficiosa.

PGR Analisa novos dados

Os novos factos que mudam completamente os acontecimentos descritos na acusação não têm relevância nesta fase para o procurador de julgamento, José Góis. «Sendo certo que o arguido pode juntar aos autos a peça a que alude […], a verdade é que esta se não pode transformar, sub-repticiamente, numa contestação encapotada; sobretudo, quando a contestação foi apresentada em devido tempo», escreve o magistrado num requerimento entregue ao juiz e em que deixa claro o entendimento de que não se deverá analisar as suspeitas levantadas sobre Carlos Silva e Proença de Carvalho, após Orlando Figueira ter mudado de advogados: «Dificilmente se afigura, portanto, que os factos que da mesma constam possam ser chamados à colação em sede de audiência».

É ainda referido por José Góis que a exposição de Orlando Figueira foi subscrita apenas por si, sem qualquer advogado, «sendo aliás questionável que se possa considerar que a mesma se contém no objeto do processo».

Mas, para a PGR, «na fase em que o processo atualmente se encontra, os documentos/elementos apresentados pelas defesas, respetiva relevância e validade, bem como a posição do Ministério Público sobre os mesmos, são apreciados pelo tribunal no julgamento». Fonte do gabinete de Joana Marques Vidal esclareceu ao SOL que «a prova produzida em sede de julgamento é também crucial para o Ministério Público ponderar se existe algum procedimento a desencadear no âmbito das respetivas competências, designadamente se é necessário desenvolver diligências relativamente a factos que não tenham sido objeto de investigação».

Quanto à recolha de dados novos, essa já começou: «Esse trabalho de ponderação já começou […] o Ministério Público vem procedendo à recolha dos elementos disponíveis». Até ao momento, não foi, porém, aberto qualquer processo.

A primeira carta de Vicente

Tanto a defesa de Paulo Blanco como a de Orlando Figueira têm mantido o entendimento de que provar os alegados erros da investigação é fundamental para que este caso tenha um final justo, considerando que num processo crime nada impede a que seja tido em conta as novas versões apresentadas.

Ainda que já tenha sido deduzida acusação e pronúncia (em junho do ano passado), ou seja, se esteja apenas à espera do início do julgamento, a defesa de Manuel Vicente já garantiu que todo este caso não passa de uma ilegalidade, uma vez que o seu cliente nem sequer foi notificado de nada –  isto além da imunidade, que, defendem os advogados, seria motivo suficiente para que este caso nunca tivesse prosseguido contra o antigo número dois do Governo angolano.

Em março do ano passado, antes da acusação, Manuel Vicente dirigiu ao diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, uma carta onde garantia nem sequer ter tido qualquer contacto com o procurador alegadamente corrompido: «Na verdade, e tendo por referência os relatos feitos pela comunicação social, esclareço que sou completamente alheio, nomeadamente, a qualquer contratação do senhor magistrado em causa – que desconheço e com o qual não tive qualquer contacto – para funções no setor privado, bem como a qualquer pagamento de que o mesmo terá alegadamente beneficiado, através de sociedade com a qual não tenho qualquer espécie de relação, e que não era, nem nunca foi, subsidiária da Sonangol».

A sociedade de que Vicente falava era a Primagest, com a qual Orlando Figueira firmou um contrato de trabalho quando saiu do DCIAP – ainda que das combinações com Carlos Silva tivesse resultado um emprego no BPA.

Para o MP, a Primagest está ligada à Sonangol, empresa estatal angolana de que à época dos factos Manuel Vicente era presidente. Mas as defesas refutam a tese da acusação por não ter ficado provada qualquer ligação da empresa contratante à Sonangol, sendo quee Paulo Blanco afirmou mesmo em contestação que a Primagest é «um mero veículo do Banco Privado Atlântico, SA, de direito angolano».

Estranham, por isso, que, após toda a descrição dos encontros de Orlando Figueira com Carlos Silva (descritos na acusação) e o contrato celebrado com esta sociedade e ainda face à garantia de Manuel Vicente de que não conhecia o procurador, o banqueiro angolano – presidente do BPA Europa e vice do BCP – não tenha sido constituído arguido.

Outro dos dados que, segundo o SOL apurou, é relevante para as defesas é o de que aquando dos encontros entre Carlos Silva e Orlando Figueira não existia o inquérito a visar Manuel Vicente. Aliás, referem não terem sido analisados outros inquéritos a visar cidadãos angolanos que passaram pelas mãos de Orlando Figueira enquanto procurador, não obstante os mesmos serem referidos no processo.

Além de Carlos Silva, Figueira e Blanco falam num papel central do advogado Daniel Proença de Carvalho, algo que já tinha sido dito também pelo juiz Carlos Alexandre, na qualidade de testemunha da acusação neste processo.

Recorde-se que os róis de testemunhas do processo Fizz, indicados pela acusação e pelas defesas dos vários arguidos, incluem ainda muitas outras personalidades das elites de Portugal e Angola. 

O que diz a acusação

No âmbito da Operação Fizz, Manuel Vicente foi acusado de um crime de corrupção ativa, um de branqueamento  de capitais e um de falsificação de documentos. Já o ex-procurador do Departamento Central de Investigação  e Ação Penal Orlando Figueira foi acusado por corrupção passiva, branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documentos. Foram ainda acusados Paulo Blanco, advogado que representou o Estado angolano em vários processos, e Armindo Pires, homem de confiança de Manuel Vicente.

Em causa, para o Ministério Público, estão alegados pagamentos do ex-vice-presidente de Angola ao magistrado português (cerca de 760 mil euros), para que este arquivasse um inquérito que corria contra si – que ficou conhecido como caso Portmill. 

O início do julgamento do caso Fizz está marcado para o próximo dia 22 janeiro.