Quem és tu Zé Gato…?

Havia o meu enormemente pequeno amigo Bento; havia a tranquilidade grave de Damas… Sobre Zé Henrique escreverei um livro

Gato. Mas gato do rio, gato do Tejo. Há quem diga que há um pouco de loucura em cada guarda-redes. Seja. Loucura ou duende, como aquele duende do Lorca que não se explica mas nasce dos pés e sobe pelos dedos. Duende sem filosofia…

Conheci uma infinidade de guarda-redes. (E esta soou-me à Lobo Antunes que tem uma fascinante crónica sobre guarda-redes. Aliás, recordei-a aqui a propósito do Barrigana e do irmão do Barrigana que era da luta livre, aquela luta livre mais circo do que outra coisa, mas enchia o Pavilhão dos Desportos e a sala do Parque Mayer).

Conheci a lendária coragem do meu amigo Bento. Manuel Galrinho Bento. Era enormemente pequeno, trepava pelos adversários e pelos seus próprios defesas como se subisse a um escadote, lá no alto, a sacudir bolas para longe, e depois descia calmamente do escadote se era hora de guardar nas mãos a bola com carinho de menina insubstituível.
Conheci a absoluta tranquilidade plácida e grave do meu bom amigo Damas, o Charuto.

Vítor Manuel Afonso Damas de Oliveira. Eu, por vezes, chamava-lhe Afonso. Era Afonso para cá e Afonso para lá e tinha graça. Almoçávamos no Manel Caçador, ali ao Areeiro, muitas vezes com o Vítor Cândido, meu camarada de a velha A Bola, e ele comia cabeças de peixe, guloso dos olhos naquela aquosidade mole de córneas ainda luminosas.

Depois aparecia o Carlos Gomes, e o Afonso, isto é, o Damas dizia: «Lá vem o maior guarda-redes do mundo!».

A frase era clássica e o Carlos Gomes também. Uma infinidade de histórias impossíveis de decorar. A teimosia das perseguições da PIDE, a fuga para Marrocos, para Argel, havia quem desmentisse, que tinha sido por causa de uma rapariguinha menor, assim a modos do Luiz Pacheco, que esse foi parar ao Torel, o Carlos Gomes não tergiversava na sua versão que teria metido um exílio iniciado na cabina do Atlético no intervalo de um jogo com o Sporting. Na segunda parte já não houve Carlos Gomes, de carro a caminho do sul e da fronteira, já ensaiando a sua frase célebre: «No hay dinero, no hay portero».

Damas tinha uma voz de Chaliapine, do tabaco e do uísque, sobretudo depois de deixar as balizas sem aquele Fantasma da Ópera, negro da cabeça aos pés, magro, elegante, ajeitava as luvas como se fosse saltar para a garupa de um cavalo e fazer dressages, até o cabelo era negro, luzidio como o melro de Guerra Junqueiro que, no cemitério da Águeda da minha infância, o Ernestinho Ruella, o homem mais elegante que já vi, recitava numa toada lenta para o túmulo da mulher florido de jarros brancos.

Conheci tantos guarda-redes para lá desta recordação da casa dos mortos. Alguns vivos, tão vivos. E um gato, o gato do rio, o peixe gato.

Sobre ele escreverei um livro. Um livro que começará assim: O livro é dele; Zé Gato que o conte.

18 de maio de 1943.  A Arrentela não era uma cidade, era uma aldeia. A cidade de Zé Gato viria depois, Lisboa e o mundo.

18 de maio de 1943: José Henrique Rodrigues Marques. Henrique, não Henriques como lhe chamavam alguns. Havia espaço que sobrasse para os pés em Rodrigues e em Marques.

Filho único de cinco irmãos. Único do mesmo pai e da mesma mãe, os irmãos dividiam-se, ora filhos de um, ora filhos de outro. O irmão mais velho tinha mais 18 anos do que ele. Exatamente 18 anos! Nascido no mesmo dia de 18 de maio. Mesmíssimo dia de Zés Gatos, alcunha comum que veio do tempo dos avós.

Arrentela, lugar de escola e de infância continuada. Infância de trabalho, porque era um tempo difícil que surgia para além do tempo difícil da Grande Guerra que ainda estava longe do fim. Foi preciso vir um dia a cidade p’ra fazer dinheiro, como diz a canção. Ou melhor, foi preciso que ele atravessasse o rio em direção à cidade e cumprisse o sonho mesmo passando, aqui e além, um mau bocado.

18 de maio de 1943. A Arrentela não sabe o que é a guerra mas sofre com ela. Fazem-se filas para os bens racionados, há quem passe fome mesmo que o Tejo, ali perto, dê de comer a tantos.

Lisboa afortunada: os mercados eram reabastecidos de ovos a preço de tabela e já iam aparecendo batatas.
Londres resistia: aviões de combate da Luftwaffe lançaram bombas de grande calibre provocando explosões violentas.
Havia quem comentasse, pelas esquinas, o Crime do Barreiro, o assassínio de Tiago dos Santos e Souza, fiscal da Companhia União Fabril, às mãos de Álvaro Capela, antigo operário dessa companhia.

Zé Gato cresceu a ver o seu irmão Alberto defender as balizas do Arrentela. Imitava-o. Com um jeito especial que haveria de ter sempre para a função. O livro será dele. Irá contá-lo até ao fim. Como uma promessa ainda por cumprir.