Diana Santos tem 33 anos e é tetraplégica. As suas limitações não a impediram de se formar em Psicologia e exercer – segundo dados dos censos 2011, apenas 22,07% das pessoas com deficiência com 15 ou mais anos trabalham, contra 47,56% da restante população. É isso que a leva a dizer que, em Portugal, é uma das “poucas privilegiadas” nesta situação. Isso e o facto de viver sozinha. e não num contexto de dependência familiar ou de institucionalização que, por cá, é a regra.
A cadeira sempre fez parte de si e da sua vida – aos seis meses, uma vacina tirou-lhe a possibilidade de vir a andar – e os corredores das casas “normais” que se encontram no mercado “normal” nem sempre têm a largura necessária à sua deslocação. Por isso vive numa casa adaptada, na Bela Vista, Lisboa, disponibilizada pela empresa municipal Gebalis.
A porta do prédio abre automaticamente à ordem do comando que Diana guarda na mala. No hall do prédio, à esquerda, fica a sua casa. Para abrir a porta basta encostar uma chapa a um sensor localizado na parede ao lado da porta. A porta, essa, é ligeiramente mais larga do que as portas comuns. Tem a mesma largura do corredor ao longo de toda a casa e das portas das várias divisões, todas amplas, para permitirem a circulação.
À entrada de casa, outra diferença: o intercomunicador está colocado a um nível mais baixo, para que Diana consiga perguntar “quem é?”. Quanto ao chão, ele é corrido e liso por toda a casa, para permitir uma movimentação sem percalços.
Nos dois quartos e na sala, as adaptações resumem-se a persianas automáticas, que funcionam através de um comando ou de um interruptor na parede. Já a cozinha conta com mais especificidades. A bancada e os armários sobem e descem através de um botão para que Diana possa cozinhar. Por sua vez, o lava-loiças, como não é adaptado e é demasiado profundo para que Diana consiga chegar, tem uma bacia pouco profunda improvisada e a torneira colocada num sítio diferente do habitual. É na casa de banho que há mais adaptações: uma sanita mais pequena para que as pernas de Diana cheguem ao chão, um lavatório mais baixo que os comuns e um polibã espaçoso e sem barreiras.
Quando chega a casa, Diana não está sozinha. Todos os dias à sua espera está Carmen Figueira, a sua assistente pessoal. É ela que faz tudo o que a limitação de Diana a impede de fazer e foi por sua causa que Diana pôde sair de casa dos pais. Mas Diana não teria possibilidade de a manter se não fosse uma das participantes do inovador Projeto-Piloto de Vida Independente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), que tem vindo a testar a filosofia de vida independente nos últimos dois anos.
Em breve, em data ainda não anunciada, também outras pessoas com deficiência pelo país fora vão poder experimentar uma vida com independência. Em outubro foi publicado o decreto-lei n.o 129/2017, que estipula as regras do programa Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI), iniciativa que transpõe o Projeto-Piloto de Vida Independente da CML para nível nacional.
Independência no dia-a-dia
Diana é uma das cinco participantes no projeto-piloto da CML, que em Portugal põe em prática algo já em vigor em vários países: uma alternativa à dependência familiar e à institucionalização. A vida independente, conceito criado pelo norte-americano Ed Roberts nos anos 70, reconhece que as pessoas com deficiência, apesar das suas limitações, têm valor e podem acrescentar algo à sociedade.
No entanto, esta alternativa só é possível com assistência pessoal – alguém como Carmen, que supre as necessidades que Diana, por si só, não consegue satisfazer. Esse é, aliás, um dos quatro pilares da vida independente, segundo Diana, a par de “acessibilidades, ajudas técnicas e políticas de empregabilidade e de apoio ao estudo”. “Sem estas condições, nós não conseguimos estar ativos na sociedade”, explica.
Diogo Martins, de 28 anos, concorda. O presidente do Centro de Vida Independente – associação cujo objetivo é divulgar essa filosofia de vida e que surgiu depois de o projeto-piloto da CML ser apresentado publicamente, em 2014 – explica o conceito para lá dos pilares. “É o reconhecimento da vida independente total em tudo o que é a vida diária, de que as pessoas com deficiência têm capacidade de autorrepresentação. É a capacidade de nos reconhecer enquanto seres humanos completos e não como, por vezes, ainda somos olhados, como despojos ou coisas que não têm sentido ou valor”, afirma.
“Nós somos humanos como todos os outros e temos tudo igual às outras pessoas, somos pessoas que contribuem para a sociedade de diversas maneiras e que lhe fazem falta porque a sociedade, se for toda igual, não serve para nada”, acrescenta o responsável, que também se desloca numa cadeira devido a uma distrofia muscular de Ulrich, uma alteração genética e congénita. Vive com a mãe, que o apoia, e não está a participar no projeto-piloto.
As experiências
No escritório da associação, um espaço cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, o grupo de quatro participantes do projeto (à exceção do quinto elemento, Filomena Carvalho, que ficou doente e não conseguiu estar presente) fala sobre vida independente e conta ao i como tem sido a experiência.
“A experiência com a assistente pessoal tem sido ótima”, confessa Diana. Carmen apoia-a nas tarefas domésticas e ajudou-a a tirar a especialização – Diana precisa de ajuda quando vai à casa de banho e coube a Carmen esse papel durante as aulas. No trabalho, é uma colega que garante esse apoio. “Hoje sinto-me completamente diferente do que era há dois anos. Muito mais confiante, muito mais assertiva, muito mais reivindicativa… não tem nada a ver, é uma realidade completamente diferente e mudou tudo na minha vida. Sinto-me realizada”, reconhece a psicóloga.
Em conversa, as gémeas Carina e Madalena Brandão, de 34 anos, concordam. “A experiência está a ser muito positiva.” Nasceram com uma doença neuromuscular que atinge os membros superiores e inferiores e, por isso, andam de cadeira de rodas. As duas irmãs, ambas psicólogas clínicas a estagiar, viveram com a mãe até serem selecionadas para participarem no projeto-piloto da CML, que lhes deu uma casa adaptada e possibilitou que tivessem assistência pessoal.
A filosofia de vida independente trouxe-lhes vantagens não só a elas, mas também à mãe. “O facto de não ser a nossa mãe a apoiar-nos, mas sim uma assistente pessoal, ajuda na nossa relação com a nossa mãe – que era já um pouco conflituosa quando íamos, por exemplo, à piscina, que implicava toda uma logística de vestir e tomar banho. Além disso, para a nossa autoestima e o estar perante o outro, faz toda a diferença ter a mãe ou a assistente pessoal”, diz Carina.
Como as gémeas explicam, têm duas assistentes pessoais – uma de manhã e outra à tarde – que as ajudam na cozinha, na lida da casa e na higiene pessoal. Já na rua, não precisam de acompanhamento. E têm tido obstáculos ao longo dos dois anos de projeto? “Temos tido muita rotatividade de assistentes, o que não é fácil e é bastante desgastante.” O problema, denunciam os participantes no projeto, é que “o trabalho de assistente pessoal é mal pago no projeto-piloto”.
Como Diana explica, “a figura de assistente pessoal não existe na legislação laboral, portanto estamos com um problema de ter de pagar a recibos verdes. O trabalho é mal pago, 5,50 euros por hora, o que leva a que as pessoas que se candidatam a esta função tenham pouca responsabilização pelo trabalho. À mínima oportunidade de um trabalho mais leve e mais bem remunerado, a pessoa desiste e acaba por haver alguma rotatividade”.
Algo particularmente importante para o sucesso da relação com a assistente é a confiança – um fator que pode ficar mais assegurado se a remuneração for maior. A flexibilidade e o respeito pela assistente também são determinantes para que tudo corra bem. Para Diana, “se se é inflexível, não se pode querer que o assistente pessoal seja flexível. Isso é uma coisa que se vai criando e tem de haver flexibilidade dos dois lados”.
O regime de horas do projeto é ideal para permitir isso, uma vez que dá aos participantes a liberdade de gerirem o tempo de que precisam para as suas necessidades consoante a disponibilidade do assistente. Todos os meses têm um determinado número de horas para usarem. E é essa flexibilidade que os participantes pedem para lá dos projetos-piloto quando, um dia, a filosofia de vida independente for aplicada de forma mais séria.
Um caso diferente no grupo é o de Miguel Monteiro. Não nasceu com nenhuma limitação mas, aos 21 anos, depois de um acidente na praia, ficou tetraplégico e perdeu a visão na cirurgia. Quando soube do projeto através das gémeas, quis candidatar-se. “Eu sou muito dependente e, quando esta hipótese surgiu, equacionei–a. Apesar de agora ter os meus pais, que me dão muito apoio e são espetaculares, futuramente eles podem faltar.”
Na altura do acidente, Miguel estava no terceiro ano do curso de Organização e Gestão de Empresas – e conseguiu terminá-lo, com a ajuda dos pais. Em 2017, já com o apoio de Inês, a sua assistente pessoal, começou o mestrado em Serviço Social no ISCTE. “É bom ter a ajuda da Inês porque não me sentia com coragem para submeter os meus pais novamente ao mesmo processo de me ajudarem com os estudos”, confessa. Fez o primeiro semestre, mas percebeu que esta área não é a sua paixão e decidiu candidatar-se a outro mestrado. “Quando tenho alguma coisa em mente, enquanto não tento fazê-la, não desisto. Agora já tentei, já posso desistir”, diz entre risos. “Se entrar no outro mestrado, mudo. Se não entrar, faço este com muita dedicação.”
É o único dos cinco que não tem a experiência de viver sozinho – continua a viver em casa dos pais, com a assistência de Inês, que vai lá a casa fazer-lhe “a barba, a comida e a higiene pessoal”. E mesmo não tendo saído de casa dos pais, admite sentir-se “muito mais livre e independente” com a assistência pessoal.
Ao i, a tutela partilha do entusiasmo dos participantes. Ricardo Robles, vereador dos Direitos Sociais da CML, não tem dúvidas: “É possível fazer a vida independente funcionar em Portugal, com tudo o que isso implica.”
Ser assistente pessoal
Inês Antunes é a assistente pessoal de Miguel. Começou a conviver com pessoas com deficiência através da Associação Salvador e depois conheceu Diana, que lhe falou do projeto, em maio de 2017. “Eu era enfermeira, trabalhava num hospital, tinha um horário supercompleto, e ser assistente não era algo que estivesse previsto acontecer na minha vida. Entretanto, por ter mergulhado no mundo deles, despertei uma paixão”, conta ao i. “Eles não correspondem àquela ideia comum do ‘coitadinho’. Tem de se perceber os mecanismos de adaptação deles, que para nós é desafiante e, ao mesmo tempo, encoraja-nos para enfrentarmos a nossa própria realidade. Dão-nos uma coragem imensa”, confessa.
Conheceu a história do Miguel e, depois de se “fartar” da vida hospitalar e de se demitir, aceitou ser sua assistente. “O valor é redutor para o enfermeiro, mas o Miguel é uma pessoa realmente fantástica.” Entretanto voltou a trabalhar também como enfermeira e desde aí tenta adaptar o seu horário às necessidades de Miguel.
Enquanto assistente, que é remunerada para cumprir a sua função, reconhece os seus limites e obrigações quando comparados, por exemplo, com os da família. “O grau de confiança e o compromisso são diferentes. Enquanto a família tem um poder diferente sobre a tomada de decisões em relação aos cuidados do Miguel, eu não. Eu tenho a responsabilidade e o dever de fazer as coisas exatamente como ele quer que elas sejam feitas”, explica.
Para os interessados em serem assistentes pessoais no projeto-piloto a nível nacional, no site do Centro de Vida Independente é possível submeter a candidatura. Não há nenhum requisito a nível de formação e, como Diogo, o dirigente da associação, explica, “o CVI recebe candidaturas de todos os tipos de pessoas, com ou sem formação”.
Depois, a associação faz uma triagem de acordo com as necessidades das pessoas com deficiência e a disponibilidade dos candidatos a assistentes. Segue-se a entrevista do participante no projeto ao potencial assistente – o primeiro passo para uma vida independente e digna, como a de uma pessoa sem limitações.