Donald Trump. Jekyll à superfície, Hyde sob o verniz

Donald Trump agarrou-se ao teleponto escrito pelo governo e não cometeu erros grosseiros. A serenidade, contudo, mascara um discurso nacionalista.

Não há país capaz da indignação permanente. As violações normalizam-se, mais tarde ou mais cedo os músculos que acionam uma sociedade tornam-se também eles uma coreografia, os movimentos da política, por força da sua repetição, dão em fadiga ou farsa. Quem o argumenta é Masha Gessen, autora e jornalista norte-americana e russa. Defende que os EUA atravessam agora o cansaço social que há em estar constantemente indignado. Como a Rússia já o fez com Vladimir Putin, explica no seu último livro, faz agora a América com Trump.

No seu primeiro discurso do estado da nação, o mais fraturante presidente norte-americano das últimas décadas massajou os músculos da fadiga e discursou com disciplina, nunca se afastando das frases redigidas por um enorme coletivo de coautores e que na madrugada desta quarta-feira bastavam para conter a indignação nos círculos liberais e na mais severa imprensa. Trump prometeu modernizar o arsenal nuclear dos EUA, atirou-se de novo ao acordo nuclear iraniano, fez do tema central a distinção entre quem é e não é americano, recusou-se a ajudar os que não são, e, todavia, o que se discutia esta quarta na imprensa era o Dr. Jekyll, não o Mr. Hyde que surgia nas entrelinhas.

Nenhum presidente escreve os seus discursos por completo, mas Trump parece não ter construído muito daquele que fez na madrugada. Segundo a imprensa americana, os seus autores foram sobretudo Mike Pence, o vice-presidente, Stephen Miller, o ultraconservador e um dos ideólogos da política americana de imigração, Gary Cohn, o conselheiro para os temas económicos e H.R. McMaster, o homem da Casa Branca para os assuntos da segurança nacional. Entre tantas penas, não havia muito que errar.

Trump, fosse nos momentos em que exagerou os sucessos da sua administração ou elogiou a vasta coleção de heróis americanos convidados para a cerimónia, não errou de forma grosseira. A fadiga da indignação, contudo, ainda não terá chegado ao extremo: ninguém esta quarta argumentava que o discurso do estado da nação seria um momento de viragem na postura incendiária do presidente, como fizeram muitos órgãos de comunicação quando Trump se dirigiu pela primeira vez ao Congresso, há quase precisamente um ano.

Os cidadãos e os outros

Trump não aprofundou os temas legislativos, salvo para se congratular com a reforma fiscal, prometer que encontrará os fundos para mais de um bilião de dólares em reforma das estruturas públicas, e, sobretudo, dizer que só dará chance de cidadania aos quase dois milhões de imigrantes chegados em criança ao país caso os democratas aceitem alterações nas leis de acolhimento e concordem com o seu muro na fronteira sul. Não se alargou nas leis, mas insistiu nos temas de união: “Estendo uma mão aberta aos membros de ambos os partidos, democratas e republicanos, para que possamos proteger os nossos cidadãos, sejam quais forem os seus contextos, cor, religião e credo”, prometeu. “Este é, na verdade, o nosso novo momento americano.”

Sob o verniz do Dr. Jekyll do momento, no entanto, estalava com nitidez o grande tema central do discurso: a proteção dos que são americanos e o abandono dos que não o são. “Os americanos são também sonhadores”, disse Trump esta quarta-feira, usando o mesmo termo atribuído às pessoas chegadas em criança aos EUA cujo destino está no limbo depois de o presidente americano ter revogado as proteções criadas há anos para evitar a sua deportação – David Duke, antigo líder do Ku Klux Klan, aplaudiu estas palavras no Twitter.

Trump, por exemplo, trouxe ao Congresso os pais de duas adolescentes assassinadas por alegados membros do gangue MS13, que ele e os seus apoiantes designam como um cancro criado pela imigração descontrolada para a América, e ao longo do seu discurso atacou as leis “caducas” de acolhimento de pessoas nos Estados Unidos. A cada machadada destas, o presidente americano regressava ao tema da união de cidadãos – os verdadeiros, quase se lê, não os outros – e do seu eleitorado “esquecido”. Nas palavras do repórter da “New Yorker” Jonathan Blitzer: “Foi difícil, ouvindo o discurso do presidente, não contar as referências abundantes a ‘cidadãos’, mesmo quando não falava de imigração. Por eles, ele tem compaixão. Pelos restantes, nem por isso.”