Richie Campbell. “A única forma de explicar estas influências é Lisboa”

É um novo amanhecer e um novo dia. “Lisboa”, a mixtape da mudança é apresentada, no Altice Arena

O concerto de “Lisboa” em Lisboa é amanhã na antiga sala atlântica. A primeira parte é do promissor Mishlawi.

O ciclo reggae/dancehall esgotou-se no “Lisboa”?

O dancehall não, aliás há bué influências de dancehall no disco. Sobre o reggae, é fatalista dizer que o ciclo terminou. Não vou deixar de fazer reggae mas neste momento não é o que me dá mais pica. O reggae não está na melhor fase e, enquanto consumidor, não sou estranho a isso. A época que estamos a viver não pede tanto reggae, nem a nível de sonoridade, nem da parte da mensagem. Isso nota-se até na Jamaica. Não está a sair reggae nem com a qualidade, nem com a frequência de antigamente. No dia a dia, ouço muito mais dancehall, r&b e afro. Quem está a fazer melhor dancehall até são os nigerianos. Os poços da criatividade por vezes secam de um lado e movem-se para outro. Sempre gostei de cenas novas, nunca me prendi ao antigo. E tenho que ser sincero comigo. Não é o fim de um ciclo mas é uma fase nova.

Porquê mixtape e não álbum?

O Drake até fez uma playlist! Honestamente, penso que essa questão é para nós – para quem está dentro do meio – porque, para quem ouve música, não interessa para nada. Fiz uma mixtape, dois álbuns, e agora esta mixtape. A única razão porque lhe chamo mixtape é pelo processo de criação ter sido muito mais parecido com o primeiro. Os álbuns foram trabalhados durante um determinado período em que estás com as mesmas pessoas. Desta vez foi diferente: há dois anos, construí o meu estúdio caseiro e durante esse tempo fiz bué de experiências. Umas funcionaram, outras não. Fiquei com as melhores. Não há a coerência de quem trabalha durante três meses num álbum mas, no fim, talvez o “Lisboa” até tenha ficado mais coeso com a ajuda do Lhast [produtor]. Acabou por ser a viagem dessa transição.

Foi um processo solitário?

Foi. Sozinho em casa no estúdio. No entanto, nunca tinha dado tanta liberdade para alguém mexer como ao produtor. Nos outros álbuns trabalhei com músicos, mas a visão era minha. Nunca confiei muito no gosto de quem estava à minha volta. No caso do Lhast, conheço-o há dez anos e sei que cresceu a ouvir as mesmas coisas que eu. Foi a primeira pessoa em quem, de facto, confiei. A escrita foi solitária, mas o processo não tanto.

Os números de streaming confirmam que a mensagem passou mas dizias que também há pessoas dececionadas. 

Nos números, não noto. Se refletir genericamente, a maioria das pessoas que me seguia gosta desta nova fase e apanhei pessoas novas que não me ouviam antes. Mas sim, ainda agora quando cheguei [à Altice Arena], o segurança disse-me: “parabéns, excelente trabalho mas gosto mais das cenas antigas”. O que me têm dito não é tanto que não gostam, é mais que respeitam e gostam mas preferiam a fase anterior. Prezo muito a sinceridade. Se partes para uma transição, tens que assumir o risco. 

Sentiste preconceitos quando te deste a conhecer como artista reggae?

Compreendo perfeitamente esse preconceito, porque a realidade é como é a maior parte dos cantores reggae não têm a minha aparência. O mais engraçado foi ter sentido esse preconceito no meio fechado do reggae, como mais tarde no meio mais alargado da música. No reggae, ser rasta era imediatamente um cartão de crédito. Podias ser um gajo qualquer, que ganhavas logo outra credibilidade. O único sítio onde esse preconceito me preocupava era na Jamaica e foi o único sítio onde não o senti. Notei que me olhavam de forma diferente, mas assim que mostrava o trabalho, respeitavam-me. O que estava a fazer na música era bem recebido. O que diziam de mim cá nas festas ou nos fóruns de reggae, que era uma merda e um betinho, nunca me incomodou muito. Conheci muitos autoproclamados rasta que de rasta não tinham nada.

Chegar aqui é um marco. Ser o fruto de uma equipa que nasceu fora da indústria tradicional tem um valor acrescido?

É um trabalho de equipa, sem dúvida, e é muito importante para nós. Sendo um gajo que cresceu nas festas de reggae, nós sempre tivemos uma imagem – desinformada na altura – anti-indústria. Acabou por ser bom porque sempre mantivemos a dignidade dentro da indústria. Nunca tive um contrato 360º (vendas, concertos, publishing e merchandising). Não faz sentido para mim. Os nossos contratos são de licenciamento e distribuição. Foi sempre uma luta nossa, não ceder. Aliás, isto não teria a importância que tem se não fosse feito dessa forma. Se fosse o produto de uma editora, não era feliz. É importante ter o controlo para poder fazer uma transição por minha conta e risco. 

A indústria também se transformou graças a pequenas e médias produtoras como a Bridgetown (propriedade de Richie Campbell e dois sócios).

A transformação no panorama teve a ver com gajos da minha geração que cresceram com a Internet e a noção de que não precisas das editoras para nada. De repente, apareceram veículos para levar a música às pessoas. Isso dá-te a confiança para poderes navegar no mercado e assegurar sempre a dignidade do artista. A Bridgetown é isso. Ganhámos o poder de defender o artista acima de tudo. Dantes, era necessário fazer cedências. A indústria cortava-te aos bocados. Ainda há uma velha guarda cuja primeira preocupação são os parceiros. Isso canibaliza o artista. Nós também estamos aqui com apoios [Sony e Everything Is New] mas são isso mesmo: apoios. 

O que é que há de Lisboa no “Lisboa”?

Ao chamar “Lisboa” à mixtape não estou a impor que seja o “som de Lisboa”. Neste processo de transição, produzi sozinho. Ao fazê-lo, saiu uma coisa que não é nem reggae, nem dancehall, nem r&b. É uma mistura. A única forma de explicar estas influências é Lisboa. Há uma parte que vem da minha mãe ser inglesa e viciada em reggae. Entre os 16 e os 18 anos, o reggae estava na moda e vivi bué isso. Estava na escola quando a MTV bateu em Portugal e era só Sisqo, Jay-Z e Ja Rule. E à medida que fui crescendo e entrando na música, sempre tive cabo-verdianos na banda. Tive uma namorada cabo-verdiana. Só um gajo de Lisboa podia fazer um álbum destes. 

Toronto (cidade de Drake e de toda uma embaixada canadiana de novos cantores de r&b sobre fundo eletrónico) também não está presente?

Ya, sem dúvida. Todo o mundo está a ouvir Drake e cenas de Toronto. Há uma semelhança curiosa com a Linha [de Cascais]. A minha geração, que é a do Drake, cresceu com reggae. Eles lá com dancehall. O artista favorito do Partynextdoor é o Vybz Kartel. É o meu também. Em Toronto, há uma grande comunidade caribenha. O som deles tem forte influência jamaicana. Nota-se em algumas canções do Drake. Não digo que não tenha sido influenciado pelo som de Toronto mas as referências são as mesmas e levam a caminhos parecidos. 

Dá-te mais gozo esta Lisboa?

Sim, Lisboa era uma seca. Havia muito preconceito. Não se notava a multiculturalidade. Hoje em dia, todo a gente concorda que isso é Lisboa. Quero promover isso. Os vídeos foram todos filmados em Lisboa. Quero fazer parte e entrar nessa energia. 

A língua nunca foi uma prioridade. 

Cantar em jamaicano é a prova de que faço o que quero. Não consigo controlar, nem gosto de controlar a música que faço. Inevitavelmente, o que me sai é em jamaicano. É a minha identidade. Sei que é uma barreira para o público português mas a multiculturalidade tem ajudado. 

Cantar para Madonna que significado tem?

Epá, isso foi…(ri-se)…não é mesmo o meu campeonato.