O tesouro inca do golo!

Louco! Nas bancadas, o povo embasbacava-se e deixava correr pelos beiços aquela baba admirativa que se dedica aos heróis humanos, de pele e osso, que ousam medir-se com os deuses, nem que sejam deuses de trazer por casa como são os deuses do futebol, íntimos e familiares. «Diziam que eu era louco porque estava sempre…

Louco! Nas bancadas, o povo embasbacava-se e deixava correr pelos beiços aquela baba admirativa que se dedica aos heróis humanos, de pele e osso, que ousam medir-se com os deuses, nem que sejam deuses de trazer por casa como são os deuses do futebol, íntimos e familiares.

«Diziam que eu era louco porque estava sempre a tentar fazer coisas diferentes»: Juan Seminário, natural de Piura, San Miguel de Piura tal como a fundou Francisco Pizarro, o comandante dos homens de ferro que demandaram o Peru na busca do ouro quíchua de Manco Capac. Mas talvez louco também porque corria como um, desvairado, incontrolável, subitâneo. E no fim dessa corrida enlouquecida havia o tesouro inca do golo!

Em maio de 1959, em Lima, Lima-La-Fea, essa cidade indescritível que ainda não era Lima-La-Horrible. Ou melhor, era e não era. Eu explico, eu explico. Foi em 1964: Sebastián Salazar Bondy transformou o epíteto no título de um livro. Era um libelo contra a oligarquia. Os editores peruanos tiveram medo. Muito medo. O livro acabou por sair primeiro no México. Mas Lima-La-Horrible fora criada antes de Salazar Bondy e ele próprio o confirmou incluindo na abertura parte de um poema de César Moro, autor de La Tortuga Ecuestre: «Para decirme que aún vivo/respondiendo por cada poro de mi cuerpo /al poderío de tu nombre oh Poesía. Lima la horrible, 24 de Julio o Agosto de 1949».  

Mas eu ia para 1959, mês de Maio, mês das rosas, e portanto Lima-La-Horrible não era popular ainda com este nome mas já fazia parte da poesia sul-americana. A Inglaterra jogava pela primeira vez no Peru. Treinada pelo habitualmente cavalheiro Winterbottom, que se dava de quando em vez a atitudes plebeias que lhe valiam muitas críticas na Grande Ilha para lá da Mancha, já tinha Bobby Charlton, Billy Wright e Jimmy Greaves. Não bastou. 

Ninguém conseguiria parar, nessa tarde, no Estádio nacional, frente a mais de 50 mil pares de olhos atentos, a raiva explosiva de Miguel Ángel Loyaza Ríos. A linha avançada peruana ficou pendurada para todo o sempre na parede branca da sala de estar da memória do país: Óscar Gómez, Juan Joya, Alberto Terry, Loyaza Ríos e Juan Roberto Seminario. Ainda sem acento.

Loyaza deixou-se encantar pelo som melodioso da sereia europeia. Nesse mesmo ano assinou pelo Barcelona, mas não havia lugar para ele. Evaristo, Kubala e Kocsis atiraram-no para o anonimato. Renasceu na Argentina, no Boca Juniors, no River Plate, mas não voltou a vestir a camisola branca da risca diagonal vermelha da sua selecção.

Loyaza podia ser o menino bonito dos adeptos peruanos nesse tal mês de Maio de 1959 quando o Peru derrubou a soberba inglesa por uns pouco críveis quatro-a-um.

Nunca nada fora tão falado nos bairros de Familias Unidas, Virgen del Rosario e San German até ao sossego pacífico de San Cristobál e aos subúrbios de Callao. Um vento de orgulho atravessou a Ciudad de los Reyes. E sussurrava-se outro nome: Juan Roberto Seminário Rodriguez. Ele fora o furacão para lá da tempestade. Três golos, aos 10, 39 e 80 minutos.

Juan Seminário.

Fica aí, iluminado pelo ponto parágrafo que lhe é devido.

O triunfo dos peruanos foi tão extraordinário que a Radio Sport repetiu o relato do jogo dois dias depois às oito e meia da manhã: «Para que todos gocen recordando los incidentes, mediante la grabación de tan trascendental victoria».

Em Inglaterra, o Herald, trazia a público a vergonha pela pena do enviado San Leitch: «Imaginem a maior das indignidades sofrida no Peru que jogou com quatro bons jogadores e sete bailarinas, patrocinado por uma marca de cervejas reduzindo a selecção inglesa à figura triste de um grupo de noviços perdidos».

Como de costume, Winterbottom não se ficou: «Já estou amargurado que chegue. Não quero nem saber o que dizem de nós em Inglaterra para não ficar mais amargurado ainda».

O selecionador peruano era György Orth. No ano seguinte treinou o FC Porto. Foi no Porto que morreu, a 11 de Janeiro de 1962.

Seminário foi levado em ombros pela populaça, mas não fugiu às críticas de La Prensa: «Criticado por ser individualista, en esta ocasión no fue la excepción. Sin embargo, los tres goles anotados y el manejo de la diagonal por izquierda le dieron la razón para sus desplazamientos en la cancha».

Loyaza, por seu lado, só lia elogios: «Miguelito jugó un partido formidable! Sirvió un pase como con la mano para el segundo gol de Seminario».

Seminário, o Expresso de Lima, viajou para Lisboa. Jogou dois anos no Sporting, marcou 42 golos e seguiu para Saragoça. Também chegaria ao Barcelona.

Nessa tarde de 17 de Maio foi grande como nunca!

afonso.melo@newsplex.pt