António Borges Coelho. “Lemos sempre o passado com os olhos do presente”

O povo que fez a primeira revolução burguesa no planeta perdeu o seu avanço nas malhas do capital rentista que  perduram até hoje

Já tinha entrevistado António Borges Coelho outras duas vezes: a primeira para um documentário sobre Álvaro Cunhal e a segunda para um documentário sobre a vida na clandestinidade. Creio que desde a última vez passaram quase dez anos. Aquilo que mais me fascina no historiador, para além da sua magnífica obra, escrita com paixão, em que parece que vemos respirar as vozes do passado, como se estivessem ao nosso lado, é a forma sempre viva e inteligente como fala das coisas. O gancho da atualidade da entrevista é a reedição, por parte da Editorial Caminho, da obra do autor e a saída para as livrarias de “A Revolução de 1383”. Numa anterior entrevista dada ao “SOL”, o historiador, nascido em Murça em 1928, fazia notar que “a História não é uma linguagem matemática”. Nela cabem várias  texturas. É uma sinfonia composta de vários sons e tocada em vários instrumentos, num resultado em que o todo é mais que a soma das partes, mas em que, para perceber essa mesma História, não se pode reduzir tudo ao barulho dos tambores. O homem que saiu do seminário convencido que saía para o inferno, mas a achar que antes isso que lá ficar, a quem um pedreiro deu a ler um volume d’“O Capital” de Marx, que tinha escondido numa lata enterrada num quintal, acha que a economia não é a única explicação da História e que a vida é muito mais rica que qualquer determinismo. Anos mais tarde, não participou na fuga dos dirigentes comunistas da fortaleza de Peniche para poder dedicar-se a escrever a história e tentar colmatar alguns silêncios demasiado ruidosos que a ensombravam. Como era possível que o islão tivesse estado 500 anos na península Ibérica e ninguém falasse disso?
    
Em que circunstâncias foi escrito “A Revolução de 1383”?

Parte da investigação foi feita na fortaleza de Peniche. Li e tirei notas da “Crónica de D. João i” e, como só podia receber um volume de cada vez, tirei notas exaustivas do primeiro volume e do segundo. Somando a leitura em Peniche de outros autores que escreveram sobre o tema,  trouxe muito material que depois me deu as bases, já em liberdade, para escrever “As Raízes da Expansão Portuguesa”. A PIDE mandou logo retirar o livro das livrarias e submeteu-me a um interrogatório, com a ameaça de me revogar a liberdade condicional. Que eu estava a atacar as teses do Estado Novo. Era um livro de História, não era um livro sobre o regime nem sobre o colonialismo português. No ano seguinte, em 1965, publiquei “A Revolução de 1383”. Integrou-se numa coleção muito inovadora da Portugália em que participavam novos historiadores. Eu tinha de me apresentar mensalmente à PIDE e, quando o volume saiu, fecharam-me numa cela blindada e sem janelas. Estive lá duas horas. No fim mandaram-me embora sem uma palavra. Isto só para dizer… 

Que o “1383” era muito importante para a PIDE (risos). Esteve preso quantos anos mais depois da fuga de Peniche?

Mais dois anos.

Não devem ter sido dois anos fáceis.

Foram os piores anos, anos de provocação quase constante. Logo a seguir à fuga, fui levado para o Aljube e submetido à estátua [tortura em que os presos políticos eram obrigados a passar muitas horas em pé, sem se mexerem]. Estivemos na iminência de ir para a cadeia de Izeda, em Bragança. Tínhamos ficado quatro.

Na altura pesou no facto de não ter fugido o querer ficar na legalidade e publicar esses livros?

Sim, não queria ser funcionário do partido [PCP], queria ficar cá, escrever, dedicar-me à História e à literatura, era esse o meu grande objetivo.

Foi uma decisão difícil? O seu alfaiate, e julgo que padrinho de casamento, aceitou facilmente?        

(Risos) O meu padrinho de casamento foi o Alexandre O’Neill e nessa altura não podia falar comigo, mas o Cunhal tentou dissuadir-me uma série de vezes.  Sofri algumas represálias, consideraram que eu tinha abandonado o combate, já não era o homem que dedicava toda a vida à luta nem vivia só para ela.

Não considera que quando Cunhal consegue publicar, em 1975, um livro sobre as lutas de classes na Idade Média, ele vai retirar alguma inspiração ao seu trabalho?

É ao contrário. Ele escreveu o livro dele na Penitenciária e, quando chega a Peniche, já tem o livro, e eu levo o manuscrito escondido por baixo da camisola para a minha cela. Tirei uma série de notas na mesma tarde. Algumas delas estão citadas [em nota de pé de página] no capítulo sobre a agricultura portuguesa no séc. xiv. Dá-se precisamente o contrário, até por que a minha visão não é coincidente com a do Cunhal.

Como é possível que tenhamos em Portugal a primeira revolução burguesa e, ao mesmo tempo, um historiador, da envergadura de um Fernão Lopes, capaz de descrever outras realidades para além dos poderosos?

Na Europa desenvolvia-se a Guerra dos Cem Anos e o Grande Cisma do Ocidente, com um papa em Roma e outro em Avinhão. Portugal travara três guerra com Castela e Lisboa sofrera o incêndio dos arrabaldes ricos da cidade. Os principais dirigentes tinham sido derrotados e presos na batalha naval de Saltes e levados em escárnio para Sevilha, onde estiveram cerca de um ano presos. Viveu-se uma explosão revolucionária. Nas Cortes de Coimbra foi “eleito” um rei quase parlamentar, padre, e um homem letrado autor do “Livro da Montaria”. A sua descendência também tinha essa característica. Por exemplo, D. Duarte escreveu um livro bem original, “O Leal Conselheiro”; e D. Pedro, “A Virtuosa Benfeitoria”. O infante D. Henrique, um homem de ação, era um visionário. Fernão Lopes, muito provavelmente de origem mesteiral, esteve ligado desde cedo à casa real e à casa do infante D. Fernando, o mártir de Arzila e Fez. Fernão Lopes era tabelião e essa profissão foi essencial para o seu labor de historiador. Fez um trabalho extraordinário, ainda hoje me admiro como era possível escrever o que relatou. Como era possível o cronista pintar quadros como o do rei D. João i a beber urina para convencer um seu vassalo a vencer o veneno que trazia no corpo? Basta-lhe um brado para nos fazer entrar no bruaá das multidões.

O que é também extraordinário para um homem que vivia na corte é a perceção não só do aparecimento da burguesia, mas do povo na arena histórica.

Sem dúvida. Nessa altura, os concelhos tinham uma força muito grande e a nobreza não tinha a força que terá mais tarde. O clero estava dividido pelo Grande Cisma do Ocidente e perdeu o senhorio de algumas cidades principais. O golpe do mestre de Avis obedecia a uma estratégia que pressupunha a mobilização do povo. Esta mobilização foi fundamental na cidade de Lisboa. Durante uma semana, a cidade está sozinha em revolta e depois começam outras cidades e vilas a tomarem partido pelo mestre de Avis.   

Qual a razão que explica que, inicialmente, metade das terras que tomam partido pelo mestre sejam do Alentejo?

Tem a ver com o desenvolvimento de novas forças produtivas, de uma nova agricultura no sul, uma agricultura voltada para a exportação e para o mercado. Não era exclusiva, mas era dominante nos concelhos principais.

Apesar de Portugal ter feito a primeira revolução burguesa, porque é que esse avanço, em relação a outros países, se foi esfumando com o tempo?

O problema das revoluções é que trazem bandeiras que, mesmo vitoriosas, tendem a rasgar-se com o vento das tempestades. Há novas gerações que aparecem, que vêm à vida, muitas vezes a primeira ainda tem todo o orgulho em relação ao passado. Aljubarrota foi a derrota estrondosa da orgulhosa nobreza feudal peninsular. As vitórias marcaram várias gerações, mas cada geração quer deixar a sua marca. A dos filhos de Aljubarrota será a da arrancada para o Atlântico e para a expansão no norte e na costa de África.

Não é também a derrota no norte de África, na batalha de Tânger, e a prisão de D. Fernando que levou a isso, obrigando os portugueses a desistir dessa região?

Tânger foi um episódio, a expansão para a costa de Marrocos continuou e manteve-se até à segunda metade do séc. xviii. No séc. xv, a expansão para Marrocos seguia um impulso contraditório: a classe que vivia das rendas e não pagava impostos queria meter lanças em África para aumentar as rendas a cobrar no reino; Lisboa e as cidades e vilas suas aliadas queriam ocupar bases marítimas para chegar ao ouro africano e lançar-se no negócio dos escravos. A família real dividiu-se. O infante D. Pedro, um homem muito culto, autor da obra “Virtuosa Benfeitoria”, viajou na Europa e protagonizou uma segunda revolução, em Lisboa, em 1438. Como cabeça das cidades e das vilas, opôs-se à política guerreira. O homem da derrota de Tânger é o infante D. Henrique, é ele que promove as primeiras viagens e inicia o comércio e o rapto de escravos. 

Foi feita uma história séria da escravatura ou, com a ideia dos brandos costumes e de que Portugal foi dos primeiros países a aboli-la, continua a ser uma questão pouco tratada?

É preciso ver que há uma historiografia do Estado Novo e outra depois da Revolução de Abril. A nova historiografia está atenta e até há especialistas na história da escravatura. Até 1974 era ignorada pura e simplesmente. E se aparecia era como uma pequena legenda a uma gravura, sem relevar o sofrimento dos escravos índios e africanos ou o seu papel na história de Portugal e do Brasil. O Brasil foi o suporte da Restauração e da economia portuguesa, e vai ligar-nos profundamente a Inglaterra, tornando-nos muito dependentes de Inglaterra.

De alguma maneira, esse processo já existia em 1383-1385, com a participação de tropas inglesas, nomeadamente em Aljubarrota….

A situação é muito diferente. As forças produtivas são muito diferentes no séc. xiv em comparação com as da Restauração ou nos finais do séc. xvii, com a descoberta do ouro. Normalmente tende-se a dizer que foram os ingleses que nos ajudaram, que fizeram a Restauração e que venceram em Aljubarrota. Isso não é verdade. Os ingleses participaram e nem sempre com sucesso. Na terceira guerra com Castela, no tempo de D. Fernando, foram muitos mortos pelas populações do Alentejo. Foram para o Alentejo assaltar e roubar porque não lhes pagavam o soldo, e a malta tratou-lhes da saúde. Depois houve o casamento de D. João i com a inglesa [Filipa de Lencastre], mas a Inglaterra ainda não era a potência em que se tornou no séc. xviii. Em Aljubarrota participa com a tática “pé terra”  [um conjunto de técnicas de defesa das forças de infantaria em inferioridade numérica], mas essas técnicas já tinham sido usadas por Nuno Álvares Pereira na Batalha dos Atoleiros. 

Como é justificável que estando Portugal tão avançado do ponto de vista político em 1383-85, passe a ser dos países mais atrasados e que mais usaram a Inquisição, expulsando centenas de quadros preparados? Como é que estes dois países são possíveis e um chega ao outro?

Avanços, atrasos. Até ao final do séc. xvi,  Portugal mantém o monopólio da navegação pela rota do Cabo e as bases dum considerável “império” na América do Sul, nas ilhas atlânticas, nas costas de África e na Índia. D. Manuel foi um rei venturoso em todos os aspetos, quer como herdeiro da coroa, quer pela riqueza que veio do Oriente. Só que a economia e a sociedade têm o seu ritmo. D. Manuel converteu à força os judeus e deixou partir os muçulmanos. Os judeus convertidos foram segregados como minoria, tornaram-se cristãos-novos. Dedicavam-se ao comércio, aos ofícios e à finança. Despertavam a inveja e a cobiça. Na Europa do norte vingava a Reforma e multiplicavam-se as guerras religiosas. A Igreja Católica respondeu à Reforma na península Ibérica com o Concílio de Trento e com a Inquisição criada em Portugal pelo rei D. João iii. Durante mais de dois séculos, a condenação à fogueira e as expropriações levaram à fuga de milhares e milhares de cristãos- -novos e dos seus capitais, fortalecendo os países reformados. No início, os judeus convertidos foram equiparados em direitos aos outros cristãos, os velhos. 

A Inquisição surge como uma forma de eliminar concorrência?

Já Gil Vicente tinha chamado a atenção: o paço em frade tornado não é frade nem é paço. No tempo de D. João iii, o paço está dominado pelo clero. Quais as consequências? D. João de Castro, que foi vice-rei da Índia, defendeu aquilo a que hoje chamamos o método experimental. Era amigo do rei e do infante D. Luís, e teve medo. O desenvolvimento científico foi travado pelos qualificadores do Santo Ofício e pelos teólogos tridentinos. Vai correr muita água pelos rios. Temos de esperar pelo marquês de Pombal e pelas revoluções liberais do séc. xix para mudar o rumo. Quando se dá a Restauração, a Inquisição é apanhada em contrapé. O inquisidor-geral  entrou na conspiração para matar o rei restaurador D. João iv. Consegue salvar-se e é recebido com uma manifestação de regozijo em Évora. Já o arcebispo, e chefe da conjura, morre na prisão. Os inquisidores arrogam-se o direito de chamar à Mesa um diplomata restaurador. Desencarapuçado, é ameaçado por falta ao respeito ao rei Filipe iv de Espanha, o nosso inimigo que combatíamos de armas na mão. Os restauradores querem  criar uma companhia de comércio [Companhia do Comércio do Brasil] e a Inquisição é contra. O Padre António Vieira e a maior parte dos jesuítas são a favor. Aprovada a companhia, os inquisidores recorrem ao Papa, que obstaculizasse à formação desta. No reinado de D. Pedro ii  houve força para suspender alguns anos a Inquisição, mas esse esforço foi gorado. Voltou a haver mais fuga de capitais. As riquezas geradas pelo Império Português foram alimentar a Holanda, Inglaterra, Itália e o Mediterrâneo oriental. As duas Companhias das Índias holandesas, por exemplo, foram formadas com muitos capitais originários de Portugal. 

Esse atraso é todo devido ao domínio religioso?

Deve-se à formação de uma monarquia teocrática, à concorrência dos países que admitiam a liberdade de consciência, a uma sociedade em que o clero e a nobreza possuíam boa parte da terra e não pagavam impostos e em que metade do país mantinha uma estrutura produtiva quase feudal. Os concelhos tinham perdido a sua força, dirigidos em boa parte por fidalgos e fidalgos titulares. Estive recentemente a rever as provas do meu livro sobre a Inquisição de Évora. É brutal a razia sobre cidades e vilas feita pela Inquisição na época da Restauração. Só num ano prenderam 116 cristãos-novos em Elvas, cidade fundamental para a resistência ao inimigo espanhol. Num ano prenderam 116 pessoas, não da plebe, mas militares e gente com responsabilidades na defesa.

A Inquisição andou a fazer o trabalho dos espanhóis?

Esteve do lado da monarquia universal católica encimada pelos espanhóis, embora alguns inquisidores individualmente estivessem pela Restauração. Mas o núcleo da Inquisição estava do outro lado. 
Porque é que a Inquisição teve um peso tão grande em Portugal e Espanha, comparados com outros países católicos?
Tem que ver com a correlação de forças internas e também com o facto de Portugal estar no cu da Europa. Está isolado. Por um lado, os conflitos que ocorrem na Europa central passam-lhe, em parte ao lado, mas, por outro lado, isso deixou-nos mais isolados e esse isolamento marcou bem a nossa história.

Pode-se dizer que a História que faz é marxista?

Evito o rótulo.

O rótulo é mau?

Não, o Marx não é mau. Li Marx com muito entusiasmo. Mas ele não é tudo, a ciência histórica tem regras. Para a sua escrita, não se pode recorrer à chapa cinco. Fui muito influenciado por Marx, mas mal de mim se não tivesse sido influenciado por outros. 

O próprio Marx, que foi beber a muitos – ao socialismo francês, à economia política inglesa e à filosofia alemã – concordaria com isso. (risos)

Também bebeu nos gregos. A fila dos pensadores é imensa. Nenhum foi liquidado pelos que se seguem – combatido, ultrapassado, mas fica sempre uma marca.

De alguma forma pode dizer-se que a sua historiografia coloca os homens e mulheres que fazem a História nas condicionantes em que vivem e é mais uma história de estruturas do que uma história política de acontecimentos centrada nos príncipes e reis?

Eu sou o pior juiz daquilo que escrevi e escrevo. Não parto de ideias prévias, mas da construção dos factos. Na marcha dos homens no tempo, o corpo não está separado da mente, formam uma unidade material, e se as suas ideias repousam em suportes materiais ou na mente dos outros, a morte do corpo é a morte da mente produtora de ideias. E a mente, agora, está cada vez mais insubmissa. Depois do 25 de Abril, a historiografia foi submersa pela economia e a sociologia, mas não se pode subestimar a história política. O homem faz-se cada vez mais a si próprio, usando uma frase de Gordon Childe. 

A História é-nos útil para nos preparar para o futuro?  

Os homens olham o passado histórico com os olhos do presente. Mas para irem cada vez mais ao fundo, têm de mergulhar profundamente no passado. E como é que isso se faz? Temos de passar uma parte da vida a ouvir o que disseram as vozes do passado e saber como é que reproduziam as suas condições de existência. O processo histórico segue a sua marcha não no sentido do progresso contínuo, como acreditavam os iluministas, mas com avanços, recuos, mudanças de rumo. São raros e luminosos os finais felizes, sobram o quotidiano pesado e as ruturas brutais. 

Durante grande parte da história da humanidade, a Ásia foi dominante. Recentemente, num período que vai da descoberta das ciências, passando pela Revolução Industrial, até agora, o chamado mundo ocidental dominou. Há uma inversão deste movimento no presente?

Estamos à beira de isso poder consumar–se, mas não vou aventurar-me por aí. Não sou adivinho. Podemos analisar as forças que estão no terreno. E observa–se um desenvolvimento material velocíssimo na Ásia.

Não é adivinho, mas por vezes não é premente esse exercício de tentar projetar um futuro para além dos dados do presente? A ideia da utopia e de uma sociedade diferente não está também nessa capacidade?

Com a queda do Muro de Berlim decretou-se o fim das ideologias. Elas vivem e muito, muito lentamente, morrem. O decreto da morte das ideologias projetava consigo a ideia de uma nova utopia, a da paz universal, o fim da História. Multiplicaram-se as guerras por boa parte do mundo e volta de novo o pesadelo da aniquilação nuclear. 

Como se qualifica politicamente?

(Risos) Anda a fazer perguntas que não deve… Continuo a situar-me num quadrante político que foi o da minha vida. 

Que é?

Esquerda, se quiser. O termo é demasiado largo. Tenho muita dificuldade em definir-me. Sou um cético militante há muitos anos. Questiono tudo. Mas não estou claramente com as forças que tudo fazem para engordar cada vez mais os novos “ungidos”, que procuram por todos os meios aumentar as suas rendas, deixando a esmagadora maioria da população sem acesso a uma vida digna e ao conhecimento. 

A sua fidelidade a um quadrante político tem muito de afetivo? 

Certo. Boa parte dos meus amigos foram e são aqueles que viveram comigo momentos únicos de sacrifício e de entrega aos outros. Esses tempos de entrega marcaram-me profundamente e as marcas vão durar até ao fim da minha vida.

Como vê hoje um homem como Álvaro Cunhal?

Um homem que foi fundamental no seu tempo e que, na fase final da vida, violou as regras do seu partido. E, de certo modo, manteve-o.

Está a dizer que ele violou, durante o período do “Novo Impulso” (resolução do comité central, aprovada durante a liderança de Carlos Carvalhas, que previa medidas políticas para “modernizar” o PCP e alterar algumas normas do seu funcionamento), as regras de não emitir a sua opinião fora da organização, o chamado centralismo democrático? 

Saiu ao terreno, correu o país inteiro dizendo que a solução do “Novo Impulso” não era a correta. Não há dúvida nenhuma de que, saindo ao terreno, fez com que o Partido Comunista se mantivesse e sobrevivesse. 

O PCP, se tivesse mantido o “Novo Impulso”, teria acabado?

É provável. Dividir-se-ia talvez em pequenas capelas mais ou menos marxistas-leninistas. Esta é a minha visão, apanhada agora por si em cima do joelho.

Nessas capelas, estaria onde?

Talvez em nenhuma.

Mas pode dizer-se que é um compagnon de route (companheiro de caminho, termo em francês que se utiliza para designar gente que trabalha com os comunistas sem ser do partido)? 

Sim. 

Em grande parte do mundo, o movimento comunista acabou. Acha que voltará sob outras formas e outros nomes? 

Lembro-me de Babeuf [jornalista que participou na Revolução Francesa e foi executado pelo seu papel na Conspiração dos Iguais]. Foi um comunista. O ideário tumultuoso dos socialistas e comunistas dos sécs. xix e xx, principalmente depois de Marx e da Revolução de Outubro, espalhou-se por grande parte da Terra. A queda do Muro de Berlim travou a fundo a sua marcha, mas a utopia não morreu. Ainda há pouco, lendo a regra dos frades beneditinos medievais, encontrei a consigna “dar a cada um segundo as suas necessidades”. 

Foi militante comunista, casou na cadeia e, depois de libertado, não continuou a vida política ativa, mas como foi esse período do militante antes do historiador?

Foi muito intenso. Vim para Lisboa aos 20 anos, em outubro de 1948, sem dinheiro, sem casa, sem emprego. Até arranjar emprego foram os meus colegas estudantes que me mataram a fome. Aderi ao MUD Juvenil [organização juvenil de massas que congregava jovens oposicionistas, com o predomínio dos comunistas, e que chegou a ter 20 mil inscritos] e participo logo na campanha de Norton de Matos [general que se candidatou nas presidenciais pela oposição em 1949, que acabou por desistir dado não haver condições democráticas para participar nas eleições]. Rapidamente cheguei à comissão executiva do MUD Juvenil. De 1949 a 1955 dirigi o setor operário de Lisboa, a organização da Marinha Grande, do Alentejo e do Algarve. Quando a PIDE me foi caçar ao emprego, a rapaziada decidiu que eu tinha de passar à clandestinidade e que não podia voltar ao emprego. Estive dois anos como funcionário do MUD Juvenil, sem salário. Foram dois anos incríveis. Depois fui convidado para funcionário do Partido Comunista. Ao cabo de meio ano, duas brigadas da PIDE assaltaram-me a casa. Revistaram-me, encostaram-me à parede. De cima do poial da casa, antes de me empurrarem para a ramona, gritei, mas ao bradar “abaixo a PIDE!”, as pessoas inverteram a marcha com medo. Estive nas celas do Aljube (dois metros por um metro e dez) durante seis meses, com interrogatórios variados. Depois foi o julgamento. As sessões diárias começaram em dezembro de 1956 e prolongaram-se até 12 de junho de 1957. Da PIDE do Porto fui transferido com os meus companheiros para a fortaleza de Peniche…

Onde estava o Álvaro Cunhal

Estava. Eu levava um poema que lhe era dedicado e ao Militão Ribeiro [dirigente comunista que  morreu em greve de fome], como o célebre poema do Pablo Neruda [“A Lâmpada Marinha”, poema escrito pelo Prémio Nobel dedicado a Álvaro Cunhal e em protesto pela sua prisão]. Ele ouviu o poema e disse-me – eram tempos de crítica ao culto da personalidade –: “Eh pá, não podes escrever outra coisa?” Eu rasguei o poema. Tenho pena. Tivemos grandes conversas. Ele tinha uma grande abertura. Falávamos sobre tudo, até sobre arte e a arquitetura soviética. Teve sobre mim uma grande influência. Mas o relatório de Khrushchov ao xx Congresso do Partido Comunista Soviético tinha-me lançado numa outra órbita. Não quis continuar como funcionário do partido.

Não acha que faz falta um balanço equilibrado desses países, bastante diferente da hagiografia ou da demonologia?   

Não é só por causa das questões políticas que não queria lá viver, mas não aguentava aquele frio. Sou muito mediterrânico. Estiva lá um mês, com o Blasco Hugo Fernandes, e publicámos um livro, “No País dos Sovietes”. Eu escrevi a parte da reportagem, e ele as grandes análises económicas. Não revi as provas, ele é que o fez, e tinha lá coisas incríveis. Uma delas de que me recordo era esta, “no país dos sovietes também se morre, mas não com a injeção atrás da orelha”, uma coisa assim, ao que o revisor soviético acrescentou: “Na União Soviética também se morre, mas não com uma injeção atrás da orelha como no Ocidente.” (risos)Estava lá o Pescada, um tradutor magnífico que trabalhava ali, que me mandou avisar que era impossível que eu tivesse escrito aquelas coisas. (risos) E então eu exigi as provas, mandaram-me as provas e eu recusei o livro. Recorreram ao Cunhal, e ele deu-me razão. Depois eles sujeitaram-se a que eu passasse tinta sobre os livros que já estavam impressos, tinta em cima das passagens que considerava inaceitáveis. 

A sério? (risos)

Está ali o livro (pega no livro e recita o que escreveu no prefácio): “Nasceu de uma viagem curta e longa…” Uma das coisas que me chocaram era não haver vida noturna. Um dos guias tinha estado em Moçambique, era um gajo esperto, convidou-me para jantar em casa dele. Saí pelas dez e meia da noite e cheguei à rua e pensei: “Agora como é que eu vou para o hotel?” O gajo mandou parar um táxi, ele devia ser do KGB, e ao meter-me no táxi disse: “Agora não vais dizer que o KGB te raptou.” (risos)

Porque escolheu o passado mais longínquo e não a história contemporânea para escrever?

Quando em Peniche me lancei na investigação historiográfica, comecei como quase toda a gente: quis começar pelo princípio. Sentia que a história de Portugal estava mal contada. O poder e os historiadores tinham feito uma história que era só da gente que estava em cima. E, afinal, um povo inteiro participa na caminhada ao lado dos outros povos, partilhando ou subjugando. Da leitura da “História de Portugal” de Alexandre Herculano concluí que havia uma lacuna brutal na história portuguesa, faltava o islão. Era inconcebível. Metia-se pelos olhos dentro que 500 anos em que aqui foram poder tivessem deixado marcas. Ninguém via nada, só viam romanos. Isso foi o ponto de partida, mas também há um outro ponto de chegada. Exigia muito mais informação, exigia equipas de trabalho. E haveria liberdade para escrever uma história do presente? Está quieto, ó mau. Admiro aqueles que hoje têm a coragem de fazer uma história honesta do presente.