Marta Silva. “Fizemos sem querer o trabalho da especulação imobiliária”

A associação que dinamizou grande parte da mudança da imagem do bairro é agora vítima do seu sucesso e está ameaçada de despejo 

Aparece aqui o Largo Residências, vinda de uma coletividade, o SOU?

Assentámos arraiais aqui no ano em que António Costa vem para aqui. O SOU estava nesta freguesia. Crescemos a pique entre 2004 e 2008; a partir daí, com mais massa associativa mas menos sustentabilidade financeira, que era dada pelas aulas e pela formação artística. Nessa altura começo a perceber que a equipa tinha de se profissionalizar e não ser só na base do voluntariado. E começamos a tentar recorrer aos financiamentos e percebemos que é muito difícil; na altura, o trabalho de âmbito local não estava interessado na relação da arte com a intervenção social. Após receber dois ou três nãos percebemos que a aposta do município é mais na intervenção local. E vejo o anúncio da primeira edição do BIP/ZIP e isto faz-me pensar em tentar alargar as preocupações do SOU à comunidade local, encontrar uma atividade que não dependesse tanto da economia nacional e encontrar também um espaço público, da câmara, para dinamizar. Foi num passeio descomprometido que, ao descer pela Rua Maria abaixo, chego ao Largo do Intendente e tenho esta visão: este largo é fabuloso, e tínhamos colaborado com o Festival Todos, quando ele passou por aqui. E começámos a ver edifício a edifício devoluto, de quem eram e em que estado estavam. Quase não estava ninguém a não ser o sr. Ferro da loja das ferragens, que está aqui há muito tempo. O Ferro e o sr. Júlio da barbearia eram as únicas pessoas que tinham a porta aberta. Pedi informações e vi obras a acontecer [do lado onde se instalou António Costa], e fomos falar com o mestre-de-obras, que disse que estavam a preparar a futura sede da CML. É este homem que nos diz que daquele lado, também dos herdeiros da viúva Lamego, havia uma data de imóveis vazios, que estão a começar a reabilitação, mas que não têm ainda futuro.  

A vinda de António Costa torna mais fácil a vossa migração para aqui?

Dá-nos uma maior convicção de que poderiam acontecer coisas nesta parte da cidade e que pessoas como nós, que já tinham conhecimentos na comunidade local, pudessem servir de mediadores e evitar estas operações do “venha tudo novo para aqui”, sem ter em conta o que já cá estava. A relação anterior com o poder público que tínhamos era com a junta anterior, que era dirigida por João Grave e a sua equipa. Eles tinham uma definição do que era a sua população que estava completamente errada. Eles diziam: os Anjos é população envelhecida e não sei quê, e nós víamos fichas dos alunos do SOU e percebíamos que não era assim. Está aqui gente dos 13 aos 80, com profissões muito diversificadas e origens diferentes.

Porque era uma zona central e barata.

Sim, percebia-se que havia uma série de casais jovens a vir habitar a zona porque tinha uma série de edifícios espaçosos com um preço de arrendamento e compra acessíveis, mesmo no centro.

São a primeira associação que migra, nesta nova fase, para aqui?

Exatamente. Havia apenas duas coletividades mais de âmbito recreativo que eram o Sport Clube do Intendente e o CRA [Clube Recreativo dos Anjos]. Nós, em termos de atividades, começámos com a parte social e cultural; depois acrescentámos a parte do alojamento e, só em 2012, a obra de requalificação do largo acaba. António Costa  encomenda-nos para pensar em atividades e um festival que pudessem celebrar o fim das obras de requalificação da zona. E nós entramos como parceiros com atividades que começam a envolver a comunidade. O nosso primeiro espaço, porque o nosso ainda estava em obras, é onde é agora A Vida Portuguesa. Limpámos o espaço e fizemos uma série de exposições. Fizemos sem querer o trabalho da especulação imobiliária. Fomos ocupando espaços vazios, permitindo que eles ganhassem outros destinos que não o de estarem vazios. 

Durante este processo, isso foi-se alterando?

Foi-se descaracterizando. Até há dois anos houve um crescimento e uma transformação bastante equilibrados em que era possível conjugar passado e presente e perspetivas diferentes para o desenvolvimento do território. Os últimos anos foram anos de uma mudança acelerada em que os espaços económicos e imobiliários liquidaram os espaços mais sociais.

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