Rio de Janeiro. ‘Se não der certo, não deu certo o governo’

Intervenção militar no estado é a primeira do género desde 1988. Temer diz que se falhar a culpa é do Executivo.

Aviolência no Rio de Janeiro «é um problema direto de corrupção policial», dizia esta semana, em entrevista à BBC Brasil, o procurador José Maria Panoeiro, da equipa de cinco procuradores encarregada de investigar as organizações criminosas que atuam no estado do Rio de Janeiro. Para ele a intervenção militar decidida pelo Governo de Michel Temer dificilmente trará resultados, «salvo se acontecer um milagre».

Um milagre parece ser aquilo que o chefe de Estado e o seu Executivo esperam da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, cujo comando foi entregue ao general Walter Souza Braga Netto. As suas ordens em matéria de segurança pública vão passar a sobrepor-se às de todas as polícias, inclusive para trocar as lideranças – na quinta-feira à noite, fontes do exército, citadas pelo UOL, avançavam que deverá nomear um general como novo secretário de Segurança do estado.

Apesar de já por várias vezes se ter recorrido a militares para tarefas momentâneas e pontuais em vários estados, em tempos de maior violência, esta é a primeira intervenção militar num estado brasileiro desde a aprovação da Constituição democrática de 1988, depois da ditadura militar.

«Se não der certo, não deu certo o Governo, porque o comandante supremo das Forças Armadas é o Presidente da República. De modo que as Forças Armadas nada mais fizeram do que obedecer o comando do seu comandante supremo. Se não der certo, foi o Governo que errou, não foram as Forças Armadas», afirmou ontem o chefe de Estado em entrevista à Rádio Bandeirantes.

O Governo chegou até a ponderar a hipótese de intervir totalmente no Rio de Janeiro, assumindo todas as funções executivas estaduais, mas, segundo Temer, a decisão foi posta de lado por ser «demasiado radical».

Para aqueles que criticam a medida de Brasília, lembrando outros tempos de prevalência militar sobre a democracia, Temer lembrou que esta «é uma intervenção civil, administrativa, com a presença dos militares».

Para a deputada do PT, Maria do Rosário, citada pela Euronews, trata-se de «uma medida exclusivamente política para romper, mais uma vez, a Constituição. A medida não visa a segurança, é um projeto de criminalização total da população das periferias, das favelas, das vilas, a população pobre do Rio de Janeiro».

A julgar pelo que a Human Rights Watch Brasil denunciava ontem no seu site, os militares pretendem atuar à margem da lei no combate ao crime nas favelas e nos bairros mais pobres. O Ministério Público do Rio de Janeiro está a investigar a chacina de oito pessoas durante uma operação conjunta entre polícias e militares no Complexo do Salgueiro a 11 de novembro de 2017, mas o exército procura bloquear a investigação, impedindo os seus soldados de comparecerem para testemunhar na investigação.

«A obstrução das investigações por parte do general Braga Netto mostra a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis», afirmou Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch Brasil. «Isso é um péssimo sinal para os cidadãos do Rio de Janeiro, considerando o seu novo posto como chefe da segurança pública do estado».

Tanto o general Braga Netto, como outros comandantes do exército brasileiro, pediram ao Governo que concedesse aos soldados «proteção jurídica» para evitar que os envolvidos em execuções extrajudiciais não se vejam a braços com a jurisdição civil. E isso foi conseguido em outubro, com uma lei aprovada pelo Congresso que transferiu para a a justiça militar todos os casos de homicídios contra civis cometidos por membros das Forças Armadas durante operações de segurança pública.

Numa altura em que a violência se tornou quotidiana no Rio de Janeiro, o medo tomou conta das pessoas, que hoje parecem mais predispostas a aceitar uma intervenção mais musculada contra os traficantes de droga para poderem dormir em paz.

«A violência no Rio de Janeiro está totalmente fora de controlo», dizia esta semana em entrevista ao jornal i, a atriz e escritora carioca Fernanda Torres. «É uma loucura» com discursos de extrema-direita, como o do candidato presidencial Jair Bolsonaro, com a sua solução simples de recorrer às armas para combater a violência, atraem adeptos. «E não é só de uma classe social sem educação, é algo de uma classe média que vai à universidade», explica Fernanda Torres.

Da pacificação à morte

A chamada pacificação para os Jogos Olímpicos de 2016 parece ter servido apenas para atirar os problemas para debaixo do tapete no que diz respeito às razões para os altos níveis de violência do Rio de Janeiro, problemas esses que desde aí redobraram de intensidade e fizeram o estado regressar à violência de antanho. As guerras entre grupos de traficantes de droga causaram a morte de 6731 pessoas em 2017.

«A gente tem um problema no Rio de Janeiro, o de você ter diversos grupos criminosos que disputam um determinado espaço. E, ao longo dos últimos 20 anos, esses grupos vieram-se armando cada vez mais para prosseguir nessa disputa por território», explica José Maria Panoeiro, na referida entrevista à BBC Brasil. «Salvo melhor juízo, salvo se acontecer um milagre, a intervenção federal, em nove meses, não vai conseguir corrigir um problema que vem de pelo menos duas décadas», acrescentou o procurador do Grupo Estratégico do Ministério Público Federal.
«Apesar do uso frequente das forças, essas operações não geraram resultados substantivos, até por seu caráter de improvisação», disse ao UOL, por seu lado, a investigadora em segurança pública Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense.

Temer aposta tudo na estratégia militar, até para bem dos partidos que compõem o Governo com vista às eleições gerais de 7 de outubro. «É um jogo de alto risco, mas é um jogo necessário», referiu o Presidente na entrevista à Bandeirantes, acrescentando que «é uma jogada de mestre, mas não é eleitoral». Até porque, voltou a insistir que não estará na corrida presidencial: «Tenho dito reiteradamente, em política, as circunstâncias é que ditam a conduta e as circunstâncias atuais ditam a minha conduta. Eu não sou candidato.»

A «jogada» do Governo pode ser «de mestre», mas tem bico eleitoralista, patas eleitoralistas e faz um quá-quá muito eleitoralista, portanto, o mais provável é que não seja outra coisa se não eleitoralista.

Euclides de Agrela escreve no Esquerda online que podemos estar perante um «balão de ensaio, ainda que não imediata e diretamente para um golpe militar, para testar a simpatia e a tolerância das massas com a política de militarização absoluta da segurança pública como a melhor forma de combater o narcotráfico, o crime organizado e a escalada da violência urbana».

A ideia, segundo o professor cearense, tem três propósitos: colocar no centro da discussão o problema da violência urbana e colocar a intervenção militar como a única capaz de a travar; tornar a corrida presidencial deste ano num confronto sobre segurança pública, deixando de lado a crise social e a contrarreforma conservadora levada a cabo pelo Governo de Temer; finalmente, está essa intenção de testar as massas para um possível golpe militar no futuro.
«Basicamente, o governo fez uma grande aposta na segurança pública para a agenda das eleições de outubro», disse ao UOL Maurício Santoro, cientista político e investigador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.