João Zilhão. “Em Portugal está quase tudo por descobrir”

A mais recente descoberta do arqueólogo português, que revelou que os neandertais foram os primeiros artistas, foi manchete cá dentro e lá fora. Mas a carreira de João Zilhão é feita de muitas outras descobertas. O i quis recordá-las e saber o que pensa o investigador sobre a arqueologia em Portugal 

João Zilhão é um dos mais reputados arqueólogos portugueses. Dá aulas em Portugal, mas também lá fora, e guarda no currículo um percurso extenso pautado por descobertas que mudaram a perceção sobre o ser humano e a sua evolução. A mais recente foi divulgada há poucas semanas e revelou ao mundo que os neandertais foram os primeiros artistas. Desculpa perfeita para uma entrevista sobre o trabalho do investigador português de 61 anos, que dá aulas na Universidade de Barcelona e em Lisboa.

Dá aulas em Portugal, mas também em Espanha. Onde é mais bem tratada a arqueologia?

Do ponto de vista da opinião pública, não há diferença. O interesse pela arqueologia que as pessoas têm e os meios de comunicação refletem é, em toda a Europa, grande e traduz a curiosidade e vontade de conhecimento do passado que são inerentes à natureza humana. Do ponto de vista institucional, a diferença é, atualmente, enorme. No final do séc. xx, graças em boa medida ao impacto do processo relacionado com a preservação da arte do Côa, Portugal recuperou o atraso que tinha em matéria de administração, estudo e valorização do património arqueológico. As medidas então tomadas serviram, aliás, de inspiração para soluções que outros países europeus vieram a adotar no âmbito da aplicação a nível interno das disposições da Convenção Europeia para a Proteção do Património Arqueológico (vulgo Convenção de Malta).

E a crise, entretanto, afetou de alguma forma essa recuperação?

As mal chamadas políticas de “austeridade” seguidas pelos governos Sócrates e Passos Coelho, e que o atual governo não reverteu, transformaram em ruína (podia ser metáfora, ou jogo de palavras, mas não é, é a realidade) tudo o que então foi feito. Num mundo que não para de avançar, recuámos 30 anos.

Acha que a postura de Portugal em relação a esse campo de estudo podia ser melhorada? De que forma?

Não há omeletas sem ovos, e os ovos são os de sempre: estruturas, orçamentos, pessoal. A nível da administração pública, há que reconstituir as estruturas estatais de gestão e conservação que foram desmanteladas e dotá-las dos meios humanos necessários ao seu correto funcionamento.

E ao nível da investigação?

Há que reconstituir os programas de financiamento público, nomeadamente o Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos. Pela componente de trabalho de campo que comporta, a investigação em arqueologia é coisa de longo prazo. Sem apoios que garantam a estabilização de equipas e projetos, estaremos condenados a fogachos que acabam por não redundar em benefício da formação das novas gerações. Ou à rotina das escavações de emergência, que acabam por redundar na acumulação de relatórios e de objetos que pouco ou nada vão contribuir para o avanço e divulgação dos conhecimentos porque, na prática, voltam a ser enterrados – em arquivos, depósitos, armazéns ou, na melhor das hipóteses, museus, onde, por falta de meios para o respetivo estudo e valorização, caem no esquecimento.

Os portugueses são conhecidos por serem saudosistas e gostarem do passado, mas acha que dão o valor à arqueologia que ela merece?

Acho que sim e às provas me remeto: duvido muito que, noutro país, a reação popular e política que levou à conservação da arte do Côa tivesse tido a mesma dimensão e igual êxito. Mesmo na situação atual de colapso da administração central, vai havendo esforços individuais e também da administração autárquica que, embora de forma desigual, conseguem ir tapando alguns buracos.

Faz parte da equipa que descobriu recentemente que os neandertais foram os primeiros artistas. Qual a importância dessa descoberta?

Põe fim a 160 anos de controvérsias sobre as capacidades cognitivas dos neandertais e o seu lugar na evolução humana. As formas de comunicação por símbolos materiais a que, por comparação com práticas contemporâneas, chamamos arte e adorno pessoal implicam linguagem e inteligência do mesmo nível de complexidade que as da humanidade atual. Consequentemente, nos termos da definição proposta por Lineu no séc. xviii, os neandertais também eram Homo sapiens – como, aliás, se depreendia já da demonstração, pela paleontologia e pela genética, de que se tinham miscigenado de forma extensiva com as populações de origem última africana que começaram a dispersar-se pela Europa há cerca de 40 mil anos. Trata-se, portanto, não de uma “espécie” diferente, mas de uma população ancestral que, pelo seu caráter periférico e numericamente reduzido, acabou por ser absorvida no pool genético global. Daí que a contribuição dos neandertais para a configuração morfológica e genética da humanidade atual tenha acabado por ser menos importante que a africana; mas que existiu, existiu.

Como foi o trabalho nessa investigação?

O objetivo do projeto era melhorar a cronologia da arte paleolítica usando o método do urânio-tório (U-Th) para obter idades mínimas e máximas para as pinturas feitas com ocre vermelho cobertas por, ou executadas sobre, espeleotemas (estalagmites, estalactites, cortinas e outros tipos de concreções de calcite que se formam nas paredes das grutas). Essas pinturas constituem a grande maioria da arte paleolítica mas, por serem executadas com pigmento mineral, não podem ser datadas pelo radiocarbono. O processo consiste em examinar cuidadosamente as paredes, cartografar os pontos de amostragem possível (com base em critérios relacionados com o interesse do motivo pictórico e a aptidão para datação das concreções de calcite a ele associadas), recolher as amostras, tratá-las quimicamente, medir as razões isotópicas num espetrómetro de massa e, finalmente, calcular matematicamente a idade da calcite amostrada.

É um processo demorado?

O enunciado parece simples, mas é um trabalho moroso e que só dá resultados a prazo: entre a colheita da amostra e a sua medição podem passar até dois ou três anos. Começámos a trabalhar nisto em 2005, quando, por feliz acaso, o meu exílio académico me fez aterrar na Universidade de Bristol, onde estavam já os meus colegas Dirk Hoffmann, que tinha otimizado o método ao ponto de se poder trabalhar com amostras muito pequenas (condição imprescindível), e Alistair Pike, também ele especialista do método U-Th e que nesse mesmo ano havia aproveitado os melhoramentos do Dirk para confirmar a cronologia paleolítica da única gruta com arte parietal que há nas ilhas Britânicas. Dei-me imediatamente conta do potencial científico do que eles tinham feito e propus-lhes montar um projeto para datar a arte dos grandes sítios do sudoeste da Europa. E assim se fez. Embora, entretanto, as nossas vidas académicas tenham seguido caminhos diferentes, a colaboração continua e continuará.

Outra das descobertas em que esteve envolvido revelou ao mundo o crânio mais antigo encontrado em Portugal e um dos mais antigos da Europa. Isso acrescentou algo de novo ao nosso conhecimento sobre a espécie humana e a sua evolução?

Entre outras coisas, veio mostrar que a variação morfológica observada na humanidade fóssil, certamente muito maior que a observada na atualidade, não pode ser vista como significando a existência de uma pluralidade de espécies diferentes. O crânio da Aroeira mostra coexistência num mesmo indivíduo de carateres que até agora se julgavam definidores de uma ou outra das tais “espécies”: Homo erectus, Homo heidelbergensis, Homo neanderthalensis. Essas designações podem ser etiquetas convenientes, mas não mais do que isso. Na realidade, nunca houve na Terra mais do que uma espécie humana, a qual, naturalmente, foi evoluindo – o que se traduz, como não podia deixar de ser, na existência de diferenças importantes quando comparamos formas muito afastadas no tempo.

Há alguma zona com especial potencial arqueológico em Portugal? A zona de Torres Novas, por exemplo, onde foi encontrado o crânio?

O território a que atualmente chamamos Portugal é habitado pelo ser humano, de forma ininterrupta, desde há pelo menos um milhão de anos; portanto, é todo ele de potencial arqueológico elevado. Para as épocas mais remotas, os maciços calcários, pela presença de cavidades favoráveis à preservação de depósitos sedimentares de grande antiguidade (grutas, algares, lapas, abrigos), são zonas privilegiadas. Daí o investimento que há já 30 anos tenho vindo a fazer no estudo do sistema de grutas relacionado com a nascente do Almonda, que se situa no concelho de Torres Novas. Mas o potencial dos concelhos adjacentes (Alcanena, Ourém, Alcobaça, Porto de Mós, Leiria, Tomar, Alvaiázere, entre outros) é idêntico.

Diria que há muito por descobrir no nosso território?

Diria antes que está quase tudo por descobrir…

Na sua opinião, falta investimento na área da arqueologia no nosso país?

Falta, e muito. Exemplo paradigmático é o Museu Nacional de Arqueologia. Lisboa deve ser a única capital europeia que não tem um museu nacional de arqueologia digno desse nome e da importância das coleções que alberga. Em Espanha, qualquer capital de província tem um museu regional mais bem instalado e mais dotado de pessoal e de orçamento. O nosso MNA está há mais de cem anos em instalações provisórias e depende quase exclusivamente de apoios mecenáticos pontuais para poder ir fazendo algumas exposições temporárias. Apesar disso, e graças ao esforço e dedicação dos seus funcionários, consegue ser um dos museus mais visitados do país.

A que se deve essa situação?

Não é certamente por falta de recursos, porque se gastam milhões na construção de novos edifícios que não faziam falta e ninguém queria, a começar pelos próprios responsáveis e técnicos – veja-se o caso do Museu dos Coches. Para que se tenha uma ideia, bastavam seis meses da taxa turística que no ano passado começou a ser cobrada em Lisboa para construir de raiz um Museu Nacional de Arqueologia como deve ser. Se não se faz, não é por falta de recursos: é porque quem pode não quer.

Das investigações em que esteve envolvido, qual foi a mais importante? 

É difícil… Talvez o estudo e conservação da arte do vale do Côa, pela revolução que a sua descoberta significou para o nosso entendimento da arte paleolítica e pela importância que esse trabalho teve para eliminar a ameaça de destruição a que esse monumento único do património mundial esteve sujeito em virtude das obras para a construção de uma grande barragem.

Este ano, o Menino do Lapedo comemora 20 anos. Pode recordar-nos o contexto e valor dessa descoberta?

Tratou-se da primeira prova científica de peso a favor da miscigenação entre os neandertais e as populações de origem última africana que os especialistas designam como “primeiros seres humanos anatomicamente modernos” – prova que, apesar da controvérsia do momento, acabou por ser validada pelos resultados obtidos pela paleogenética ao longo da última década.

O que poderá haver mais por descobrir no Vale do Lapedo?

A arqueologia é como os melões: só depois de abertos é que se sabe se são bons… A única coisa que se pode dizer a esse respeito é: quem procura sempre encontra.