Hélder Freire Costa. “Cheguei à altura em que sair já seria uma atitude de cobardia”

No Dia Mundial do Teatro, o produtor do Maria Vitória explica como ultrapassou a crise económica, mesmo sem apoios

Reparei que costuma ver do balcão os espetáculos, vê todas as sessões?

Sim, exatamente ali de cima (aponta para o balcão do lado direito). O escritório é ali ao lado e de vez em quando venho aqui espreitar porque ouço qualquer coisa que não estou a gostar e venho ver aquilo que se está a fazer. Aquelas coisas que são triviais quando estão à vontade, quando sabem que o patrão não está a assistir. Isso não prejudica o espetáculo, às vezes até são coisas que têm graça, mas eu entendo que se a revista agradou na estreia é isso que se deve continuar a fazer.

O que é que o trouxe ao Parque Mayer e como é que chegou ao Maria Vitória?

Não me trouxe nada e nem eu pensava ficar cá já vai para 53 anos – quase 54. Eu era empregado bancário e em determinada altura perdi o emprego porque chegava sempre tarde. Com os meus 23 anos gostava dos bailaricos, de andar na paródia durante a noite – a noite é muito mais agradável que o dia. Nessa altura era hábito respondermos a anúncios e eu respondi a um. Fui chamado, falei com o senhor Giuseppe Bastos, que era empresário. O teatro naquela altura vivia de letras, de cheques, e era exatamente a secção onde eu tinha estado no banco. Quando eu lhe falei disso fiquei logo admitido. Posteriormente houve ali uma empatia entre mim e ele – eu para ele era o filho que ele nunca teve, ele para mim não era o meu pai, porque eu tinha pai e mãe na altura, mas era uma pessoa muito agradável, humilde de bom trato e eu fiquei muito agradado com ele. Na altura em que ele morreu, em 1975 e, aqui, neste mesmo palco, a companhia que então atuava pediu-me para chegar ao palco e para continuar com a atividade, com o apoio deles. Uma coisa é eu pedir para uma outra pessoa, outra coisa é eu pedir para mim próprio. Assustei-me um bocadinho e a verdade é que já passaram uma data de anos.

O que o move para continuar neste projeto?

Eu fui ficando, ficando, ficando. Tive a grande oportunidade de me ir embora mas sentia que havia muita gente que dependia de mim e protelei. Até que cheguei à altura em que sair já seria uma atitude de cobardia porque surgiram os problemas – e problemas muito graves – no país que atingiram fortemente o teatro. Eu que passei a minha vida a dizer que o teatro é tão necessário como pão para a boca, que o povo sem cultura não avança e cheguei à conclusão que é uma grandessíssima mentira. Na altura em que as pessoas tiveram de optar entre as rendas de casa, o pagamento da luz, da água e a escola dos filhos, optaram por isso tudo, nada pelo teatro.

E como foi ultrapassando os obstáculos?

Foi dia a dia com muitas horas sem dormir, muito trabalho dado ao teatro, muita esperança, tive sempre esperança… Desistir era ficar a dever dinheiro às pessoas e pôr o meu nome em risco e eu tenho filhos, continuar talvez tivesse a oportunidade de conseguir ultrapassar os obstáculos. A crise arrasta-se desde 2010, 2011, até agora e portanto tem sido difícil. Mas também devo dizer que já conquistei muitas coisas, já consegui ultrapassar várias dívidas e cá estou para enfrentar o futuro e continuar a pagar a quem devo.

Na peça agora em cena existe uma rábula sobre a falta de apoio da cultura ao teatro de revista. Como é que um espetáculo tão dispendioso conseguiu sustentar-se nessa altura?

Foi bastante difícil. Por uma questão de princípio, eu tinha as pessoas muito bem pagas, uma companhia grande e não quis despedir ninguém porque entendi que tinha de levar até ao fim o espetáculo. E isso foi-me embrulhando ainda mais. No espetáculo a seguir não quis que a queda fosse muito grande. Mais uma vez me embrulhei e fui fazendo isto lentamente até conseguir pôr os ordenados com justiça, mas bem diferentes daqueles que eles tinham. Nem por isso deixámos de dar bons espetáculos. Nos últimos anos tenho tido um pequeno apoio da Câmara de Lisboa e estou muito grato. Ajuda, seja o que for, ajuda sempre. Esse apoio tem feito com que não haja aumento no preço dos bilhetes, de revista para revista vamos incluindo mais material, vamos enriquecendo os espetáculos depois da pobreza que apresentámos devido à crise.

Acredita que o teatro de revista tem possibilidade de continuar nas próximas gerações?

Há uns anos que ando a precaver essa possibilidade. No Variedades lancei nomes como Marina Mota, Carlos Cunha, José Raposo, Maria João Abreu, Fernando Mendes. Já vinham trabalhando connosco, já vinham trabalhando em teatro há bastante tempo, só lhes faltava ter a oportunidade de serem primeiras figuras. Eu tenho lançado muita gente jovem, como agora vê o caso do Flávio Gil que é um jovem que tem 27 anos e é já ator, cantor, fadista, autor, encenador, portanto é um artista completo. Tenho tido companhias recheadas de gente jovem e que andam por aí a fazer teatro.

Em relação ao Parque Mayer, considera que este espaço pode vir a ter a vida que tinha?

A vida que tinha já não virá a ter porque as mentalidades e as pessoas são outras. No Parque Mayer havia quatro teatros mais um ao ar livre e havia o cinema no terraço do Capitólio. O Parque Mayer já não vai ser assim porque acabou o ABC, o Capitólio está praticamente como um fórum. Eu estive lá a assistir a uma peça e para aí na terceira fila já não se vê o ator. É plano, não tem inclinação, o que é mau para o teatro. Também estou à espera do que é que me reserva o Variedades porque já destruíram a parte de trás onde eram os camarins e a parte lateral onde era o bar e um salão de estar, onde se faziam ensaios até. Entretanto vejo as obras paradas, o que é uma praga.

No Estado Novo, a crítica que passava nas entrelinhas dos textos era um dos pontos principais da revista. Hoje em dia esta crítica ainda faz sentido?

Antes do 25 de Abril eles não deixavam passar nada, antes pelo contrário cortavam tudo. No 25 de abril nós tínhamos em cena uma revista que se chamava Ver, Ouvir… e Calar, aconteceu a revolução e no dia seguinte os autores reuniram-se aqui de emergência e incluiram no espetáculo aquilo que a censura tinha cortado. Foi um sucesso. Depois foi o Até Parece Mentira que, na minha geração, foi o espetáculo que maior agrado teve. Nós abríamos a bilheteira à uma hora com uma fila que se iniciava na Praça da Alegria e concluía ali na bilheteira do Maria Vitória.

Mas a questão da crítica. Acha que faz sentido continuar a haver crítica política e social na revista?

É a base da revista. O mote principal é exatamente a crítica social e política. Eu peço sempre aos meus autores é que não utilizem o palavrão a não ser bem defendido, quando é necessário – às vezes é necessário dar um porra -, e também que não ofendam as pessoas que se criticam porque as pessoas têm de ser respeitadas mesmo que não estejamos de acordo com a sua atuação.

E como é que tem sido a afluência de público nestes últimos anos?

Nós tivemos público até à crise. Sentimos a crise com uma certa antecedência, sem nos apercebermos que era uma crise. Pensávamos que o público não tivesse gostado da revista e que para a próxima seria melhor. Depois o público afastou-se completamente, tivemos casas muito fracas. Mas de há dois anos a esta parte, quando houve uma estabilização governamental – é verdade que a geringonça tem pelo menos trazido às pessoas uma esperança no futuro – também o público passou a vir ao teatro. O público não tem mais dinheiro agora do que no passado mas atravessou durante a crise um momento de medo. Atualmente estamos a fazer mais do triplo das receitas que fizemos durante a crise.

No Dia Mundial do Teatro costuma distinguir alguns atores da companhia. Quem vai levar as máscaras de ouro este ano?

As máscaras de ouro são dois emblemas, um de homem e outro de mulher, com duas máscaras (a comédia e o drama) contrastado em ouro com – salvo erro – quatro brilhantes. Portanto é pequena mas é uma joia que eu ofereço com muito prazer. Este ano são contemplados a Cidália Moreira que teve neste teatro inúmeros sucessos, foi uma vedetíssima. Ela está mais dedicada ao fado e já não canta muitas vezes, a vida modificou-se um bocado, mas era senhora de uma voz tremenda e circulou pelo mundo, não foi só em Portugal. O Flávio Gil é a prova de que não basta ser idoso para se ser contemplado com este prémio. O Flávio trabalha comigo aqui há alguns anos embora seja muito jovem, tem subido os degraus todos. É neste momento o ator mais completo.