Houve dois aviões muito famosos emLisboa, por sinal ambos sem voar. Uma destas idiossincrasias próprias deste país magnífico em episódios caricatos. Um deles era o avião do Mobutu, seráfico, imponente como um príncipe da ferrugem, fuselagem branca e verde amarelecendo ao longo de década e meia na sua mobilidade imperial, exibindo o orgulho pátrio: Republique du Zaïre. O outro, bar de alterne, à beira da estrada, na fronteira com os Olivais da nossa adolescência e servindo etéreos serviços femininos (talvez por isso disséssemos que pertencia à Companhia Olivalense de Navegação Aérea), testemunha de um caso macabro de uma bomba explodindo debaixo do lugar do condutor que, não por acaso, era o proprietário da aeronave sem horizontes.
Falei de aviões para ir aos helicópteros e não me recordo de nenhum helicóptero que tenha ficado para a história da capital. Mas recordo-me de um helicóptero que marcou a história do futebol. Chamava-se Dario José dos Santos. Por extenso Dadá Maravilha, o Peito d’Aço. Ele dizia de si próprio: «Só há três coisas que param no ar – o helicóptero, o beija-flor e Dadá quando está na grande-área para fazer golo de cabeça».
Que a infância de Dadá foi uma novela mexicana, isso é algo registado nos anais da história. Tinha cinco anos e viu a mãe suicidar-se. Procurou imitá-la uns anos depois, cortando os pulsos. Safou-se. Viveu num orfanato e dedicou-se a assaltos de rua. Gostava de roubar meninas. «A primeira vez que tive uma bola foi com o dinheiro que roubei de duas mocinhas. Mudou a minha vida».
Foi um jogador estranho em todos os aspectos. Grande, desengonçado, sem habilidade, trapalhão. E, no entanto, marcava golos em catadupa. Diz a lenda que só com a cabeça fez 499. Saltava lá na grande-área inimiga e esperava, sentado no ar, de perna cruzada, talvez bebendo um chopinho e comendo uma linguicinha com palito e tudo, pela bola obediente que empurrava para a baliza. Em seguida, ensaiava uma das suas frases sempre bombásticas: «Não existe golo feio; feio é não fazer golo». As frases fizeram tanto parte da vida de Dadá como os seus golos: «Tecnicamente eu era horrível. Não iria dar nas vistas só pelos meus golos porque eram todos fáceis. Então comecei a dizer frases. Elas me ajudaram a ser o que fui».
Dadá Maravilha foi um ponta-de-lança Robin Hood: juntou a rapidez ganha a fugir da polícia ao jeito de subir às árvores para entrar pelas janelas nos seus assaltos urbanos. Como nunca conseguiu aplicar um pontapé de bicliceta perfeito e irretocável, daquela beleza plástica com quePelé os desenhava, inventou o velotrol. No Brasil, velotrol é um triciclo. E soltava mais uma frase: «Para mim, na área, é queixo no peito e queixo no ombro». E ficava lá, no ar, asinhas transparentes de beija-flor aqui, hélice de helicóptero ali, parado no espaço como um Mercúrio negro.
Dadá era provocador.
Não perdia a oportunidade para desafiar os adversários, picava o ponto da rivalidade, mexia com o jogo antes do jogo. Fazia apostas com os avançados contrários e dava nomes aos golos que iria marcar. Tinha os seus próprios momentos publicitários: «Com Dadá em campo não há placar em branco». E gostava de sair correndo em zigue-zague com o central atrás, tentando morder-lhe os calcanhares. «Foi assim que comecei a carreira de jogador. Um dia saí com um comparsa para roubar uma mercearia. Roubámos e saímos correndo em zigue-zague. O dono, que era português, pegou na caçadeira e atingiu o meu companheiro no pescoço. Morreu na hora. Consegui fugir. E decidi não roubar mais».
A vida de Dadá merecia um livro e Lúcio Flávio Machado fez-nos o favor de o escrever. Logo no primeiro parágrafo conta a dor que nunca saiu do peito d’aço do Beija-Flor: «Dona Metropolitana, que sofria alucinações, estava na cozinha preparando o almoço; Dario brincava ao lado dela. De repente, num gesto impensado e inesperado, ela jogou querosene por todo o corpo, ateou fogo e saiu correndo pela rua como tocha humana. Vendo aquela cena, na tentativa de acudir a mãe, o menino correu tentando abraçá-la. E num último ato, lúcido e fraternal, ela se desenvencilhou do filho, jogando-o numa vala à céu aberto. E foi de lá, dentro de um esgoto, que ele viu a mãe morrer totalmente queimada».
E repetiu sempre, a cada golo, a cada jogo, a cada festa que se seguia ao momento em que empurrava a bola para cada um dos mais de novecentos golos que marcou na carreira: «Sou alegre mas não sou feliz».
Parece que a rapariga que estava sentada no lugar do morto ao lado de José Gonçalves, o dono de OAvião, não sofreu uma arranhadura apesar da violência da explosão. Talvez fosse como Dadá – parou no ar porque Deus a levava ao colo.
afonso.melo@newsplex.pt