Benfica-FC Porto. Dos Bravos do Mindelo ao guarda-redes escultor

Primeiro clássico para o Campeonato Nacional disputado em Lisboa. Dia 24 de março de 1935. A imprensa escreveu: “O público recebe os jogadores do Porto com a maior manifestação de desagrado registada nos campos de Lisboa.” O ovo da serpente…

A primeira página do “Diário de Lisboa” do dia 24 de março de 1935 era inteiramente ocupada por três fotografias: Estação do Rossio, ruas da Baixa; gente empunhando bandeiras; uma multidão. Um pequeno texto explicava o assunto: “Chegaram hoje a Lisboa, a fim de assistir ao encontro FC Porto-Benfica, cerca de 1500 desportistas daquela cidade que vieram em dois comboios especiais. Outros fizeram-se transportar em automóveis, que vinham engalanados com bandeiras e galhardetes das cores do popular clube portuense. Esta afluência deu uma animação desusada à cidade, não se tendo registado qualquer nota desagradável, apesar da atmosfera criada pelos incidentes que se deram, ultimamente, no campo desportivo. A gente do Porto foi recebida com a maior correcção pelos desportistas lisboetas, como era de esperar, e houve até quem se referisse ao acontecimento chamando-lhe o desembarque dos 1500 Bravos do Mindelo.”

Ah! Outros tempos! Outros tempos!

Hoje é um drama, com a selvajaria e a ordinarice espalhada pelas ruas.

Os Bravos do Mindelo: alusão aos vencedores das guerras liberais.

Pela primeira vez, Benfica e FC Porto defrontam-se para o Campeonato Nacional, em Lisboa. Era chamado Campeonato da Liga, tal como agora.

Nona jornada.

Já se tinham encontrado para o Campeonato de Portugal.

Já tinham jogado na primeira volta, no Porto, vitória do FC Porto por 2-1.

Agora, nas Amoreiras.

“O Campo das Amoreiras, ainda que melhorado com uma nova série de bancadas, quase não chegou para conter uma tão grande multidão. Ficaram pessoas de fora do recinto, por se terem esgotado os bilhetes, tendo os contratadores feito óptimo negócio. O campo apresentava um aspecto interessantíssimo, ornamentado com bandeiras vermelhas do Benfica e brancas do Football Club do Porto – e até de outros clubes da capital, como verdes do Sporting e azuis do Belenenses. A breve trecho, porém, como por encanto, desapareceram as bandeiras do Football Club do Porto como resultado de escaramuças entre o público, seguidas de um pedido da autoridade.”

Ah! Bom! Já cá faltava.

“Todo o recinto está policiado por numerosos praças da GNR comandados por um tenente.”

Faça-se a respetiva continência!

“Às 16 e 5, a équipe do Football Club do Porto entra em campo. Forma a meio do terreno para depois saudar os assistentes da grande área e dos dois peões. O público recebe os jogadores do Porto com a maior manifestação de desagrado registada nos campos de Lisboa.”

Era o ovo da serpente. Sementes de ódio e violência ganhando espaço e raízes num terreno pródigo.

Invasão Não foi preciso esperar muito: “O público que havia ficado fora do recinto, sem bilhete, força as portas e invade o campo, assistindo assim, economicamente, ao desafio.”

Bela pilhéria, convenhamos.

O Benfica domina.

Albino destaca-se por entre os demais: tem uma energia contagiante.

O FC Porto encolhe-se.

“O público tem tido períodos de silêncio, não correspondendo, assim, ao que se esperava.”

Há um ambiente pesado.

Vítor Silva, o grande avançado do Benfica, faz um golo, mas o árbitro anula. Os jogadores acatam a decisão sem reclamações.

Mas é inevitável.

Soares dos Reis é enorme.

Tem nome de escultor e pinta de guarda-redes: desdobra-se em mergulhos. Na altura ainda se usava a palavra francesa: plongeons. Ele também desenha movimentos dignos de estátua.

Aos 32 minutos, do lado esquerdo, Valadas passa a Gaspar Pinto, que remata forte e enviesado. Golo!

Pinga debate-se como pode por entre os defesas encarnados. É um leão fechado numa jaula férrea. Ruge, mas não mata.

Torres dribla um adversário e põe a bola ao dispor de Rogério: 2-0.

“A linha avançada dos vermelhos joga colocada no terreno em forma de W com mutações rápidas, isto é, variando as jogadas da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Para se dar uma ideia do encontro acrescentemos que Amaro se tem mantido sossegado dentro das suas redes, havendo só uma ocasião em que os portuenses poderiam ter obtido o ponto de honra se, porventura, Lopes Carneiro tem rematado com rapidez.”

Como se vê, a vitória do Benfica não tem discussão.

O FC Porto sobe as suas linhas como um exército desesperado a sair das trincheiras para tentar sobreviver.

Debalde. Vítor Silva tem um remate elegante, preciso, inapelável. 3-0.

“Registam-se duas óptimas cabeçadas – uma de Vítor Silva e outra de Valadas – que proporcionam defesas seguras a Soares dos Reis.”

É ele o grande entrave a mais golos encarnados.

Elástico, persistente, não se deixa abalar em caso algum. É um homem no seu posto. Defende como pode o bastião derradeiro.

“O jogo decorreu com ordem e disciplina, sem excessos, o que é facto a assinalar. A arbitragem imparcial, rigorosa na repressão do jogo duro.”

O Benfica vence por 3-0.

“A multidão delira, agitando bandeiras vermelhas. E de todos os pontos do campo sobe um clamor de incitamento.”

Apesar disso, será o FC Porto a finalizar em primeiro na classificação, com 22 pontos em 14 jogos.

Resta ao Benfica a vitória no Campeonato de Portugal. Não tardaria a chamar-se Taça de Portugal.