À sombra pacífica das mimosas…

Se Barros foi do tempo do futebol barbudo e hirsuto, José Pedro erada época dos bons rapazinhossacrificados…

De repente morre-nos o Barros e eu fico com vontade de exclamar como o Nelson Rodrigues ao saber da morte de Guimarães Rosa: «Morreu como, se estava vivo?».
Vivo e esquecido.
Nem sequer muito recordado após a morte.

Barros era uma figura. Todo ele anos-70. Tão anos-70 que podia entrar em campo com um casaco de veludo cotelê e umas calças de ganga à boca de sino (Lee de preferência) em vez de calções que ninguém ia estranhar. E depois era daqueles que entre dar e levar jogava em toda a parte, na direita, na esquerda, no meio, geralmente como defesa mas também como centro campista se a isso era obrigado.

Fazia parte do tempo, essa ubiquidade. O meu bom amigo Minervino Pietra era assim. Pau para toda a obra. Até a ponta-de-lança o vi jogar contra uns dinamarqueses sem jeito de uma equipa chamada BK.

Barros trazia consigo aquela barba de revolucionário cubano. Entrava na Luz como se tivesse acabado de chegar de Vallegrande, na Bolívia, depois de beber um chá mate com o Che. Havia um nunca mais acabar de barbas nesse Benfica. E de bigodes. E de cabelos afro ou desgrenhados. Pareciam todos naturais de La Higuera.

Havia a barba infantil do Chalana, ainda tão miúdo que não o deixavam ir sozinho ao cinema para ver um filme da Brigitte Bardot. E a imponência guedelhuda do Moinhos, um pé de vento. Os bigodes sintomáticos de Artur Jorge e de Toni. A pilosidade arrumada de Humberto Coelho a capitão.

Sobre o tema poder-se-iam escrever livros inteiros, mas hoje vinha preparado para falar do avançado com nome de carpinteiro que nasceu lá pela brancura alentejana de Mora no idos de 1932 e não há nenhuma razão para que falte ao combinado comigo mesmo.

José Pedro pode ser nome de carpinteiro, de açougueiro, de eletricista e até de roqueiro, mas ninguém desconfia que seja nome para esconder um jogador de futebol, dos bons. Foi tão bom que chegou à seleção nacional quando jogava no Lusitano de Évora nessa era em que ninguém que jogasse no Lusitano de Évora ia à seleção. 

Não se pode dizer que o Alentejo tenha sido um alfobre de grandes jogadores do futebol português, mas houve alguns que atravessaram com a serenidade própria dos que dormem sestas à sombra dos carvalhos e das mimosas o risco branco da sua dimensão simplesmente regional. Patalino, por exemplo. O enorme Patalino que chegou a ser émulo de Peyroteo e teve um convite para jogar no Real Madrid. Recusou. Não gostava de viver longe do seu Alentejo e eu, que vivo no Alentejo, naquela Alcácer onde eram verdes os cavalos encarnados, tal como cantava o meu querido Carlos Mendes, percebo-o cada vez melhor, embora não ao ponto de dizer não ao Real.

Mas Patalino era um explosivo. Uma espécie de bomba relógio preparada para destruir grandes áreas adversárias nos momentos devidamente programados. José Pedro Biléu era um predador completamente diferente.

Quando veio lá do Luso Morense para o Lusitano talvez não acreditasse muito em si próprio. Foi fustigado pelas ventanias de dois acidentes que lhe poderiam ter sido fatais, mas tinha uma idiossincrasia natural das planícies, ao longo das quais o futuro e o passado são horizontes visíveis. Um dia disse: «Espero não voltar a cruzar-me com o diabo na minha vida. Já sofri bastante».

José Pedro era do tempo do futebol sem barbas, muito anos antes de Barros, o guedelhudo que parecia um soldado da Sierra Maestra. Era de um tempo em que os jornais exaltavam os bons rapazinhos trabalhadores sacrificados que se tornavam felizes com uma bola nos pés e sob os urros da multidão. A Crónica Desportiva n.º 24, que o chamou para a capa, não falhava no apodo: «A história de um rapazinho alentejano chamado José Pedro».

Não tinha nome de avançado. Mas tinha um jeito especial para aplainar a bola como se o couro fosse madeira…

afonso.melo@newsplex.pt