Guilherme Boulos. “A esquerda não pode ser a boia de salvação de um sistema falido”

O sistema político brasileiro chegou ao limite e vai tornar-se ingovernável. A menos que haja mobilização social para o democratizar

Vindo da direção do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que ocuparam recentemente o triplex que a justiça acusa ser de Lula para protestar contra a prisão do ex-presidente, Guilherme Boulos é candidato do PSOL à presidência e um dos trunfos da esquerda brasileira na ausência de Lula da corrida eleitoral. Esteve em Portugal numa sessão de solidariedade com o Brasil organizada pelo CES (Centro de Estudos Sociais) e a Fundação Saramago.

A esquerda no Brasil afirma estar unida contra o processo que derrubou Dilma e prendeu o ex-presidente Lula, mas o facto de não ter uma candidatura unitária nas presidenciais, associada ao provável impedimento a que Lula concorra, não tornará impossível que a esquerda vença?

Veja, primeiro, nós defendemos o direito de Lula ser candidato. A condenação do Lula foi uma condenação injusta e sem provas e com o objetivo claro de o retirar do processo eleitoral. Não se pode admitir isso. Eu sou candidato à presidência da República pelo PSOL e com uma aliança de movimentos sociais, e temos diferenças com posições e pontos de vista do PT, mas isso não nos faz ser coniventes com a injustiça. A frente que está a ser formada neste momento é uma frente pela democracia e contra o fascismo no Brasil. Nós vivemos num momento muito grave: é seguramente a maior crise democrática desde a ditadura militar brasileira. Neste momento, você subordinar as alianças a um debate eleitoral é não compreender a gravidade da questão. A aliança, é preciso ser muito ampla, com intelectuais, artistas, movimentos sociais. A frente que estamos a propor é para defender a liberdade de Lula, justiça para Marielle e a democracia no Brasil, e contra o fascismo. 

Isso não desvaloriza a importância do campo político e de a esquerda conseguir eleger um candidato? 

É por isso que nós apresentámos uma candidatura e estamos fazer um debate sobre projeto político no Brasil. Agora, a unidade do ponto de vista político mais amplo constrói-se com debate programático. Este debate ainda não está amadurecido na esquerda brasileira. O momento é muito grave no Brasil, mesmo de chegarmos a ter eleições e de elas serem justas e democráticas. É algo que está em jogo. O essencial é preservar algum grau de democracia no Brasil.

Um dos aspetos mais gritantes no Brasil é uma imensa polarização social e o ódio que grande parte das camadas médias parecem ter aos governos do PT e ao Lula. Porque é que isso acontece?

A polarização brasileira não é de hoje. O Brasil é a sétima economia do mundo e está entre os dez países mais desiguais do mundo, não é de se esperar uma unidade nacional com um país tão dividido e tão fissurado na base da sociedade. 

Mas isso parece contraditório: Lula, em 2002, foi eleito com o voto da classe média, que perdeu com o Mensalão e depois de ganhar as classes populares com investimentos sociais. A própria Marielle foi eleita vereadora no Rio sobretudo com o voto das áreas da classe média.

O que está em jogo no Brasil é também o envenenamento do clima político. Essa polarização que sempre existiu na base da sociedade ficou mais escancarada na luta política, no seu debate e nas manifestações de rua. Algumas pessoas que tinham posições ultraconservadoras, machistas, racistas, xenófobas, homofóbicas e antipopulares, mas que não se sentiam livres para colocar essas posições, saíram do armário. Isso também contribuiu para um esgaçamento do nível do debate político no Brasil. Agora, o desafio da esquerda, neste momento, é enfrentar esta polarização política dentro do ambiente democrático, não permitir que a intolerância e a violência de cunho fascista dêem o tom nos debates. 

Qual é a força que a esquerda tem para isso? Nas manifestações de junho de 2013 no Brasil foi feito um conjunto de reivindicações sociais, mas que cedo se transformaram em manifestações contra o PT. A direita ficou com elas.

Houve uma apropriação por parte da direita. Como disse, não eram manifestações de direita, eram manifestações democráticas de movimentos sociais por reivindicações legítimas [contra o aumento de transportes, etc.] – aliás, resultado da crise do modelo de desenvolvimento urbano do Brasil. Até ao estouro da crise de 2008 – no Brasil, a crise estoura um pouco depois – tinha-se no país uma situação que permitia uma estratégia de conciliação. Havia margem de manobra para todos os setores serem contemplados: o andar de baixo da sociedade teve planos sociais e o andar de cima não teve um único privilégio cortado. A estrutura do Estado brasileiro não foi alterada. Quando a crise veio com força, isso acirrou os ânimos da sociedade, porque o cobertor ficou curto e alguém ia perder com essa história. Essa polarização expressa-se com mais força a partir das eleições de 2014, que depois se torna a base de uma crise política e institucional no Brasil que leva ao golpe institucional contra a Dilma…

De alguma forma, até se pode dizer que se expressa no segundo mandato de Dilma com a nomeação de um ministro das Finanças neoliberal, o que fez a presidente perder parte da sua base de apoio.

Perdeu muito da sua base da apoio. Ela elegeu-se com o discurso de não cortar direitos sociais. É preciso perceber o caráter da elite política brasileira para perceber a polarização. É uma elite que opera numa lógica de um capitalismo de casa-grande que é profundamente escravocrata. Não suporta o mínimo de avanço dos de baixo, mesmo que mantenha todos os seus privilégios. A Dilma estava a botar Levy como ministro da Fazenda [Finanças] e setores das classes médias altas estavam na Avenida Paulista dizendo que a Dilma era bolivariana e comunista. Para eles, a “Bolsa Família”, que é um programa básico de apoio social, é um programa socialista. Os setores da classe média-alta estão acostumados a ter determinados privilégios relativos e uma determinada segregação – o Brasil é talvez o único país do mundo que tem quarto de empregada, elevador social e elevador de serviço. A segregação está na alma dessa elite. E os setores da classe média urbana também operam muito nesse registo. A diferença política se converteu em ódio social, numa povofobia, e isso marca o debate político.

Esse clima e a popularidade crescente de Bolsonaro não são também alimentados por uma insegurança crescente das classes médias baixas e pelo facto de morrerem por ano, de violência, mais de 60 mil pessoas?

Há duas questões para se entender essa situação. A primeira é a insegurança, não digo apenas por causa dos homicídios – aliás, porque boa parte desses homicídios são provocados pelo próprio Estado. Ele é causa de insegurança. Nós temos a polícia que mais mata no mundo e também a que mais morre. Essa lógica militarizada leva ao conflito e opera na ideia de guerra interna. Também se tem uma insegurança institucional e uma insegurança com o futuro. Há pouco tempo era comum as pessoas terem a convicção que seus filhos viveriam melhor que eles; hoje, essa convicção não existe mais. As pessoas não têm nenhuma perspetiva de futuro. A gente chegou a 30% do desemprego entre os jovens. Num cenário como este, muito facilmente a insegurança vira medo, e o medo, a psicanálise nos mostra, facilmente se converte em agressividade. Uma forma como as pessoas conseguem lidar com a insegurança e o medo é aderirem a um discurso de força e agressividade. Bolsonaro opera muito nessa lógica: alguém que vai botar ordem na casa e acabar com essa bandalheira. Todo o mundo vai poder ter arma. Num momento de perda de perspetiva na sociedade, um discurso como este pode ser sedutor. Mas tem uma segunda razão que nos pode fazer entender a ascensão do Bolsonaro: há um sentimento de profunda rejeição à política no Brasil. O sistema político que se iniciou depois do fim da ditadura militar está falido. Não tem a menor possibilidade de estabelecer uma hegemonia e de dar coesão à sociedade. Há uma descrença completa no sistema político, as pessoas não veem expetativas na política. Você tem um aumento considerável das abstenções, votos brancos e nulos nas últimas eleições e candidatos que tentam traduzir a antipolítica – em geral, isso é feito pela direita, ganham espaço. Bolsonaro é deputado há 30 anos em vários partidos de direita e corruptos. Em 30 anos, nunca apresentou um projeto nem nunca aprovou nada que representasse algo para a população brasileira; no entanto, ele vende um peixe podre e se apresenta como novidade na política. E consegue com isso, ainda que com uma farsa, canalizar parte do sentimento de rejeição à política. O nosso desafio para lidar com Bolsonaro é o desafio de trabalhar no registo da esperança. A esquerda não se pode apresentar como uma boia de salvação de um sistema que está falido. A esquerda tem que perceber que este sistema político chegou ao seu limite. O Brasil, neste sistema político, é ingovernável. Política tornou-se sinónimo de politicagem e de balcão de negócios. A esquerda precisa de apresentar uma nova alternativa.

O problema é que, para mudar, tem de ganhar neste sistema político com as regras e deformações dele, com campanhas de 500 milhões que têm de ser, à partida, corruptas. 

É o ovo e a galinha. Para mudar o sistema político é preciso ter força. O processo eleitoral no Brasil é marcado por campanhas caríssimas, mas o nível de descrença das pessoas, inclusive com os velhos marqueteiros e com a forma tradicional de fazer campanhas, é tão grande que cria um cenário totalmente aberto. O próprio Bolsonaro é expressão disso. Está num partido pequeno que não tem muita expressão mas que, na ausência de Lula, se coloca à frente nas sondagens. É possível conseguir um processo contra-hegemónico, que seja antissistémico também do lado da esquerda, propondo um aprofundamento da democracia em consonância com a juventude e as lutas sociais mais dinâmicas que surgiram. Mas sobretudo temos que entender a campanha política como um processo de mobilização da sociedade. Qual foi o grande erro político dos governos do PT e da Dilma? Foi o erro que achar que ganhar o Estado bastava. Elege-se o presidente da República e passa-se a negociar alianças nesse Congresso com os mesmos métodos de sempre. Isso não basta. A queda da Dilma mostrou isso. É preciso ter lastro social e mobilizar a sociedade.