Quando os canarinhos assassinos tomaram conta da jaula do leão

O Brasil, campeão do mundo, esteve em Lisboa para defrontar o Sporting. Com Pelé e Garrincha!!!

“Eles vêm aí! Eles vêm aí!”

Um brado mexeu com Lisboa.

Eles eram os brasileiros, a seleção doBrasil que, dois anos antes, na Suécia, tinha encantado o mundo batendo, na final, os suecos por 5-2.

Eles eram o jovem prodígio Pelé. E Garrincha, oAnjo das Pernas Tortas de Vinicius, o maior driblador que o universo já vira depois de Stanley Matthews.

Um ah! de admiração erguia-se das páginas dos jornais, perpassava pelas conversas de café, multiplicava-se pelas esquinas da capital.

O jogo seria em Alvalade, frente ao Sporting.

Era algo habitual, naquele tempo, ver seleções defrontarem clubes em jogos ditos amigáveis. O Brasil, aliás, acabava de chegar de Itália onde empatara 4-4 com o Inter de Milão.

17 de maio de 1960.

E vinham todos. Nomes inconfundíveis, inesquecíveis nem que se passem mil anos: Dino, Djalma Santos, Bellini, o capitão, Zito, Julinho, Nilton Santos, De Sordi, Julinho, Quarentinha.

E Pelé! E Garrincha!

Estes levam ponto de exclamação.

Tornaram-se invencíveis: nunca com os dois em campo o Brasil soube o que era uma derrota.

Um acontecimento. Descrições pormenorizadas: “Os futebolistas do país irmão passaram ontem a manhã no Hotel Mundial, onde se hospedaram, e à tarde estiveram no Estádio Universitário, cedido gentilmente, para efetuarem uma sessão de treino com vista ao desentorpecimento muscular que decorreu, não obstante o tom ligeiro, de maneira a impressionar as centenas de pessoas que a ela assistiram. À noite, enquanto vários jogadores preferiram o teatro ou o cinema, passatempos que durante a digressão efetuada não lhes foi possível frequentar, o técnico Vicente Feola e alguns jornalistas foram ao Estádio José Alvalade para presenciar o encontro Sporting-Sporting da Covilhã. Feola seguiu atentamente os movimentos do próximo adversário do onze brasileiro.” 

Os jornais seguiam a vida do escrete passo a passo. Afinal, eram nada mais nada menos do que os campeões do mundo. E voltariam a sê-lo dois anos mais tarde.

Não se contava com facilidades. Feola dizia: “Sei bem que o futebol português acusa sensíveis progressos e que tende mesmo, em futuro mais ou menos próximo, a ombrear com o das nações até agora consideradas mais fortes.” Palavras simpáticas da gorducha figura…

Garrincha! Cinquenta mil pessoas em Alvalade.

“Até o chefe de Estado veio…”, murmurava-se respeitosamente, como era de bom tom quando se tratava de figuras de estadão.

Pelé deixou-se ficar. Não era uma das suas noites. Recebia a bola, dominava-a com a habilidade dos puros infinitos, dava-lhe carícias como se fosse uma cadelinha mimada e entregava-a com ternura aos companheiros.

O Sporting tinha gente como Mário Lino, Hilário, Fernando Mendes, Lúcio, o grande Seminário. Usou dois guarda–redes: Carvalho e Octávio de Sá. O segundo substituiu o primeiro, como está bem de ver, não alinharam os dois ao mesmo tempo. Mas bem que podiam tê-lo feito.

Os canarinhos não tinham pressa. Ou melhor: tinham pressa de regressar a casa depois de uma digressão fatigante pela Europa.

Mas, sobre a relva, recreavam-se. Jogavam aquele jogo tão seu e que mais ninguém é capaz de imitar.

“A toada fácil que os brasileiros impuseram ao longo da partida, mesmo que atuando quase que a passo, não deixou dúvidas quanto ao reconhecimento da superior classe dos campeões do mundo. Garrincha, por exemplo, que bateu Hilário como quis, fez maravilhas com a bola nos pés. Esse, sim… é um fenómeno.”

Garrincha: um nome que ecoava pelo planeta. Jovem pobre de Pau Grande, com as suas pernas para além da humana compreensão.

Nunca soube estar quieto. Não fazia parte da sua maneira de ser. Hilário teve de aguentar os seus lances de circo, viu–o ir e vir e voltar outra vez. Limitou-se a ir olhando, como se fosse parte do público.

A primeira parte, ainda assim, teve algum equilíbrio. Quarentinha fez um golo e foram assim para o intervalo.

Depois, os canarinhos assassinos tomaram conta da jaula do leão.

Pepe, num remate forte e rasteiro, fez o 0-2. Em seguida, Almir: canto de Garrincha, o salto, a cabeçada, o terceiro.

Finalmente, Garrincha por inteiro: recebeu na esquerda e fez que ia e foi mesmo – passou por dois adversários e chutou um golo à sua maneira.

O povo aplaudiu. Era contra os seus, é bem verdade, mas tratava-se de Garrincha. E Garrincha foi sempre a alegria do povo.

Octávio de Sá teve sorte. Só entrou depois do golo de Garrincha. Mas os brasileiros tinham fechado a loja: 0-4.