Há quem diga que os mortos passam depressa. Mas depois há aqueles mortos que não passam, mortos nunca mortos, mortos imortais. O desporto está cheio desses mortos que não morrem. Jim Jeffries é um deles.
Certa noite estava em Reno, Nevada, à espera de um combate único. Ele que fora campeão do mundo de pesados de 1899 a 1905 e se tinha retirado invicto, pura e simplesmente não conseguia dormir. A mulher Frieda foi dar com ele madrugada dentro, em pé, junto a uma janela, olhos fixos na noite escura. Perguntou-lhe: «Que se passa?».
Recebeu em troca um silêncio mais escuro do que a noite.
Muita gente escreveu, mais tarde, que Jeffries não queria estar em Reno, Nevada, a 3 de Julho de 1910. Mas estava. Por dinheiro, talvez. Por uma réstia de orgulho, provavelmente. Pela exigência de milhares de americanos, entre os quais John Griffith Chaney que todos conhecemos como Jack London, escritor dessa narrativa mágica que levou o título de O Apelo da Selva. London foi um apaixonado pelo boxe. Basta ler The Game ou The Abysmal Brute, duas novelas que não sei se existem traduzidas para português. Mas não só. Os personagens Tom King, Sam Stubener ou Felipe Rivera podiam ter muito de Jim Jeffries. Afinal, Jack London era um dos maiores admiradores de Jeffries. E tirara dinheiro do seu bolso para que este voltasse aos ringues cinco anos depois do abandono.
Jack Johnson é outro desses mortos imarcescíveis. Primeiro pugilista negro a ser campeão do mundo de pesos pesados, não foi poupado pela crítica graças ao seu estilo defensivo que não contemplava movimentos em falso, esperando sempre pelos erros dos adversários para desferir o golpe fatal. Havia gente que cuspilhava para o chão quando ele subia ao palanque e murmurava com desprezo: «cobarde». Jackson estava-se nas tintas. Era um tipo educado e pouco dado a tranquibérnias. Guardava os punhos para quem o desafiava.
Nessa noite de Reno, Jeffries olhava o céu negro e, provavelmente, questionava os seus botões: «Que estou aqui a fazer?».
Sete anos antes recusara um combate com Jack Johnson. Nessa altura, o boxe era segregacionista. Havia um campeão do mundo de brancos e um campeão do mundo de negros. Jim Jeffries e Jack Johnson. Johnson desafiou Jim mas este não quis nem ouvir. Não ia pôr em causa o seu estatuto por uma questão de raça. Agora largara o seu rancho em Burbank, Califórnia, para ser ele a desafiar Johnson. O mundo poderia parecer-lhe um bocado ao contrário. Ainda por cima porque fora obrigado a um esforço duro para tirar do corpo vários quilos que tinha acumulado entretanto. Mas havia aquela ladainha contínua que apelava ao seu regresso, uma espécie de zumbido de abelhas cada vez mais sonoro, com Jack London pelo meio dizendo: «Emerge from your alfafa farm and remove that smile off Johnson’s face».
Acabou por encolher os ombros. A oferta era tentadora: 101 mil dólares pelos direitos de transmissão do combate mais um bónus de 10 mil.
«It’s money I’m after, man», comentou com London. E predispôs-se a calçar novamente as luvas.
Jack Johnson não foi meigo com ele: «Jim está acabado e não tem condições para lutar contra quem quer que seja. Ele próprio sabe isso melhor do que todos nós». Encolheu os ombros por sua vez. Jeffries que viesse lá do rancho de alfafa que ele daria conta do recado. Como deu.
O regresso de Jim Jeffries pode ter sido para ele uma questão de dinheiro, mas foi para muitos os que patrocinaram a luta contra Johnson uma necessidade de afirmação racial e a frase de Jack London está aí para o provar. Também não era por acaso que o primeiro campeão do mundo de pesos pesados negro e universal iria ter pela frente um homem que tinha a alcunha poética de ‘Great White Hope’. ‘A Grande Esperança Branca’.
«It was plainly evident that he was suffering a terrible mental struggle», disse mais tarde o seu treinador Joe Choynski. Jeffries tinha-se tornado insuportável nos últimos dias. Fugia dos jornalistas, reclamava por tudo e por nada nas sessões de treino, recusou-se a cumprimentar Johnson no início da refrega.
Ao 15º assalto, Jim caiu. Reergueu-se por momentos mas Jack Johnson atirou-o de novo ao tapete enquanto uma multidão de mais de 22 mil pessoas soltava imprecações e gritos racistas.
Um pouco por todos os Estados Unidos desencadearam-se confrontos de rua entre brancos e negros: vinte e cinco mortos e mais de cem feridos. Um filme sobre o combate de Reno foi distribuído comercialmente, mas proibido em muitos estados por receio de nova escalada de violência. Encostado ao seu canto, a Esperança Branca abanava a cabeça: «I couldn’t come back, boys. I couldn’t come back».
afonso.melo@newsplex.pt