64 casas de elegância

Um dia descobri que era possível ser-se de um jogador de xadrez como se é de um clube de futebol. E fui do Capablanca!

No dia 24 de agosto de 1946, podia ler-se na última página do Diário de Lisboa uma notícia que ia assim: «Morreu esta madrugada no Estoril o grande campeão mundial de xadrez, dr. Alexander Alekhine, que há meses se encontrava em Lisboa. Ainda ontem à noite estivera a trabalhar numa obra que tinha em preparação e fizera, igualmente, alguns estudos de treino. Mais tarde foi foi acometido de um ataque de angina pectoris a que não pôde resistir, sucumbindo antes da chegada do médico».

Alekhine, ou o dr. Alekhine, mais respeitosamente, tinha 53 anos. A sua morte ficou para sempre envolta em mistério. A autópsia desmentiu a angina pectoris da imprensa: encontraram-lhe uma bola de carne mastigada com três centímetros de diâmetro a bloquear-lhe o esófago. Mais tarde, o seu filho diria: «Foi apanhado pela longa garra de Moscovo». Anos antes, tinha sido considerado um inimigo do bolchevismo e fugido para França. 

Alekhine foi sempre conhecido pela sua capacidade de concentração. Era capaz de jogar doze partidas ao mesmo tempo de olhos vendados. O que significa que dois jogadores do mesmo nível poderiam atingir o cúmulo da abstração xadrezística: jogarem doze simultâneas sem precisarem de tabuleiros, só verbalizando as jogadas.

Houve um tempo da minha vida de estudante em que me dedicava mais aos livros de xadrez do que às sebentas do Direito. Dediquei-me a memorizar aberturas de jogos históricos, como o de Botvinnik contra Capablanca em 1938, no qual o russo aplicou uma extraordinária defesa nimzo-índia que o levou a uma vitória retumbante. Era aqui que queria chegar: descobri, pelo caminho, que se podia ser de jogadores de xadrez com se de clubes se tratassem. Pela sua forma de jogar, pelo seu estilo nas movimentações, pela sua personalidade e forma de vida. E eu fui do Capablanca!
Foi em Buenos Aires, entre setembro e novembro de 1927, que o dr. Alekhine roubou o título de campeão do mundo ao cubano José Raul Capablanca. A segunda maior batalha de toda história do xadrez por um mundial a seguir ao Karpov-Kasparov de 1984. Foi um choque!

Nunca até aí, o dr. Alekhine tinha vencido uma partida a Capablanca. O mundo aprendia a soletrar o nome do jogador infeliz transformado em cadáver na tranquilidade do Estoril. 

Aos 4 anos, já Raul Capablanca jogava xadrez como um homem. Como diria Saint-Saëns sobre Mozart: «Apesar de criança não tinha a menor inexperiência». Batia-se com o pai sobre o tabuleiro das 64 casas e ganhava sempre. O pai, José Maria Capablanca, era oficial do exército espanhol. Raul afirmaria, ternurento: «Era un malo ajedrecista, pero un bueno soldado».

Confesso que o meu fascínio por Capablanca veio mais da forma como encarava a vida do que como encarava o xadrez. Também foi dr., para que nesse ponto Alekhine não lhe ganhasse avanço, com o curso tirado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Ia jogando por prazer, sobretudo. E porque a sua elegância, tanto no jogar como no vestir, lhe foi abrindo as portas de uma certa sociedade que o encantava de sobremaneira. Em 1913 entra para       o Ministério das Relações Exteriores de Cuba. Um diplomata, portanto. Viaja, espalha charme, torna-se famoso pela habilidade com que utiliza uma inteligência aguçada. No seu país ganha a alcunha de ‘Máquina de Jugar’. 

Passa dez anos consecutivos sem que alguém o consiga superar nos movimentos das pedras que dispõe num estilo novo, temerário, tal como acontecera no momento do seu primeiro grande triunfo, frente ao campeão cubano Juan Corzo, tinha somente treze anos. O seu ídolo era o americano Nelson Harris Pillsbury, o hipnotizador das meninas solteiras de Havana: exibia-se nos salões jogando 16 partidas de olhos vendados e acrescentando-lhes, à laia de simpatia, mais uns jogos de damas e um mão de whist.

Capablanca quebrou, frente ao alemão Emanuel Lasker, matemático de profissão, o mais longo reinado de qualquer campeão mundial de xadrez: 27 anos. A vitória foi de tal modo retumbante que, a partir daí, passaram a chamar-lhe ‘El Infalible’. Divertia-se a apresentar artifícios nas  mais diversas capitais da Europa e do Mundo. Com um descaramento divino, digno do Ega, de Os Maias, declarava o número de lances que iria necessitar para derrotar os opositores. Batia sempre certo. Para tal precisava de calcular milhares de possibilidades, até as mais absurdas.

Perder o título mundial para Alekhine, corroeu a fama de Capablanca com aquela destruição gradativa típica dos metais. No dia 8 de março de 1942, pelas nove da noite, estava emManhhattan, a ver um jogo de xadrez de rua. De repente, queixou-se: «Por favor, ayúdenme a quitarme el abrigo. Tengo una jaqueca insoportable». 

Uma veia rebentar-lhe na cabeça sem respeito pela elegância do seu cérebro. T ambém tinha 53 anos. Tombou no chão como um cartucho vazio de papel pardo.