Com a morte na mão esquerda

Enquanto Ernie Shaaf caía no ringue a caminho da morte, o público, empurrado pela raiva gritava: “You are a fake!”

Tinha 24 anos, mas o corpo, enorme, não passava de um invólucro. Pesava 95 quilos. Provavelmente, agora menos, sem a alma. Era um homem grande e tinha uma alma grande mas não faço ideia de quanto pesaria a sua alma. O comboio viajou com ele de Nova Iorque para Boston. Com ele, com a mãe e com as irmãs. Nenhum disse palavra.

O médico garantira que se tivesse sobrevivido ficaria aleijado para sempre, mais que provavelmente hemiplégico. Mas Shaaf não fez um esforço sequer para continuar vivo a partir do momento em que entrou em coma. O punho de Primo Carnera desabara sobre ele como uma avalancha dos Apeninos. Carnera tinha 1,97 de altura; 125 quilos de peso. A imprensa italiana foi cruel: «Il gigante dal destro che uccide».

Dia 10 de fevereiro de 1933, Madison Square Garden em Nova Iorque, 13º assalto. Os jornais estavam errados: o golpe final de Carnera foi com a esquerda. Durante um, dois segundos, parece, pelas imagens do filme antigo, que Shaaf percebeu, de repente, o que lhe ia acontecer. A morte deve tê-lo olhado de frente com o seu olhar vítreo de quem não sabe o que é a indulgência. «Nem esquecimento nem perdão», como bradava o Conde de Monte Cristo. Ernie desapareceu no vazio. Tombou inerte no ringue, o árbitro começou a contar. E contava o quê? Os minutos que ainda teria de vida? Mais de 20 mil pessoas se levantaram, os pés impulsionados por molas de raiva, cuspilhando desprezo pelos cantos das bocas deformadas: «Fake! Fake! You are a fake!»

A malta de Carnera leva o vencedor em ombros nos festejos espúrios. Jack Sharkey, o amigo de Shaaf, seu camarada na Marinha, seu treinador, procura afastá-lo da confusão, esforça-se para que desperte, para que reaja, arrasta-o para o seu canto, vai ficando desesperado, uma angústia tremenda ocupa-lhe o peito, grita, pede auxílio. Nas bancadas, os loucos da cidade nada percebem do drama que se desenrola. Estão presos na sua fúria enlouquecida que nem sequer deixa perceber a chegada da Cavaleira do Apocalipse. Também eles cavalgam a morte.

Shaaf está longe.

É apenas um rapazinho perdido e sem regresso.

 

Testemunhas dizem que, quando chegou ao Polyclinic Hospital, Shaaf ainda balbuciou umas palavras. Depois caiu na apatia total. A seu lado, Jack Sharkey, ‘brother in arms’, campeão do mundo de pesos-pesados.

Carnera recebeu a notícia de morte de Shaaf como um tiro. Foi assoberbado por uma maré de emoções, desfez-se na consolação das lágrimas, jurou nunca mais erguer o seu punho assasino para quem quer que fosse. A sua carreira terminaria ao mesmo tempo da do homem que matara. Seria Lucy, mãe de Ernie, a impedi-lo. Escreveu-lhe: «Kindly be assured that I do not consider you in any way responsible for the death of my boy. I feel toward you like I would have wished your mother to have felt toward my Ernie if you had met with some misfortune during your bout with him».

Palavras embrulhadas numa elegância de dor.

O funeral de Shaaf, na sua cidade natal de Wrentham, foi invadido pelos seus companheiros dos ringues. Todos os boxeurs apareceram menos Carnera. A depressão tomara conta dos seus nervos.

 

Há páginas extraordinárias na história do desporto e esta é uma delas: quatro meses após a morte de Shaaf, Primo Carnera, o homem que o matou, disputou o título mundial com Jack Sharkey.

Escreveram-se laudas de amor e vingança. As pessoas esqueceram-se de que se tratava simplesmente de um combate de boxe, tal como tinha sido o que opusera o experiente italiano Carnera ao jovem ambicioso americano Ernie Shaaf.

Ao sexto assalto, Primo Carnera desferiu um golpe inexorável. Shark foi ao tapete. Como uma baleia que dá à praia retorceu-se num estertor mas não voltou à luta. Desilusão por entre os espetadores que previam novo combate entre a vida e a morte. Rumores correram à disparada sobre a verdade do knock-out. Que a Mafia teria controlado ambos os adversários e acertardo o resultado. Jack apressou-se a desmentir: «Estava em perfeitas condições físicas e já tinha combatido o tipo antes. Mas algo não me deixou ir além. Havia sempre, em redor dele, uma imagem difusa de Ernie. Não há dor tão grande como a que sentimos em sonhos. Depois dei por mim envergonhado. Perdi»s

O fim da vida de Primo Carnera foi melancólico. O antigo campeão de pesos pesados dispôs-se a figuras ridículas como wrestler e morreria atacado pela diabetes e por problemas de fígado. O dia 15 de Fevereiro de 1933 nasceu pleno de azul em Boston. Para Ernie Shaaf de pouco serviu. Estava envolto num repouso tão potente, de fazer parar o coração.