Sardinha: o pão para pobres que passou a capricho de ricos

A espécie continua rainha em Portugal, mas está cada vez mais cara e a maioria é importada. Fantasma do fim da captura deste peixe azul continua a ameaçar o setor. 

Mudou o ano, mas o discurso não. Pelo segundo ano consecutivo, os cientistas endurecem a voz e alertam para a necessidade de suspender totalmente a captura de sardinha. Já os pescadores insistem que há peixe no mar. Muito. Mas afinal em que ficamos? É esta a pergunta que muitos fazem. 

De acordo com o Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES), não há margem para dúvidas: «Deve haver captura zero em 2019». Porquê? O parecer científico do organismo explica que o nível de biomassa (peixes com mais de um ano) é inferior a metade do limite biológico de segurança. Ou seja, estamos a falar do valor considerado adequado para a recuperação da espécie. Lê-se no documento: «O recrutamento [peixes em idade reprodutiva] tem estado no nível mais baixo desde 2006 e em 2017 foi estimado como o mais baixo em toda a série histórica». Mas nem todos concordam.

Com os pescadores a contestar cada vez mais os resultados deste parecer, Ana Paula Vitorino tomou posição e fez saber que «o Conselho Internacional para a Exploração do Mar dá um parecer científico com base na informação que tem, mas o que é facto é que muitas vezes peca por excesso». E é por isso que, segundo a ministra do Mar, o Governo tem estado «a fazer um trabalho aprofundado sobre a matéria».

«A sardinha tem vindo a diminuir paulatinamente na nossa costa e para se conseguir cumprir o primeiro objetivo temos de garantir que as capturas são de modo a que continuemos a ter sardinha no futuro», sublinhou a responsável pela pasta, acrescentando que a solução deve ser encontrada no equilíbrio entre a captura e a sustentabilidade. E relembra: «A sardinha faz parte da cultura dos portugueses e da economia».

Velhos argumentos
No final do ano passado, Portugal já tinha sido alertado para a necessidade de colocar um ponto final na captura desta espécie. Dizia o parecer que tinha de acontecer já este ano. No entanto, o Governo resistiu e começou, desde cedo, a dizer que se tratava de um recurso de interesse estratégico. Para os pescadores, o alerta era um insulto.

Na base da avaliação do ICES estava o facto de o stock ter vindo a decrescer a um ritmo muito acelerado: de acordo com o organismo, passou de 106 mil toneladas em 2006 para 22 mil em 2016. E, para o ICES, mesmo que não existisse pesca, seriam necessários cerca de 15 anos para que o stock de sardinha chegasse a um nível considerado «acima do limite de biomassa desovante adequado».

O alerta não foi bem recebido no setor e obrigou a Comissão Europeia a esclarecer que não tinha sido tomada qualquer decisão em relação à pesca em Portugal e Espanha. No entanto, o parecer bastou para criar polémica e obrigou o Ministério do Mar a reagir. Foi necessário assegurar a continuação do «empenhado em manter a pesca de sardinha em níveis que permitam a recuperação». Para o Governo, estava em causa uma atividade importante para o país: «A sardinha é um recurso de interesse estratégico para a pesca nacional, cuja sustentabilidade ambiental, económica e social importa garantir, atento o impacto deste recurso nas comunidades piscatórias, na indústria conserveira e comércio de pescado, nas exportações do setor, na gastronomia e no turismo».

Pescadores insultados
A Associação das Organizações de Produtores da Pesca do Cerco foi sempre das primeiras a reagir.  Considerou o parecer do ICES «radical e um insulto a todos os pescadores portugueses que, nos últimos anos, têm realizado grandes sacrifícios para assegurar a melhoria do estado do stock da sardinha em águas portuguesas».

De acordo com o presidente desta associação, as conclusões divulgadas, em outubro do ano passado, estão «em total contradição com a perceção dos pescadores de que a abundância de sardinha nas nossas águas é muito mais significativa que a que observaram nos últimos anos».

A posição dos pescadores tem sido, aliás, muito clara e não é raro assistir a protestos. Um deles aconteceu esta semana em Peniche. A fiscalização excessiva à pesca da sardinha levou à paralisação e só quando o Governo assumiu «o compromisso de lutar pelo prolongamento da pesca até setembro» é que estes profissionais voltaram ao mar.  

Humberto Jorge, da Associação de Armadores de Peniche, esclareceu que, na sequência das negociações entre Portugal, Espanha e a Comissão Europeia, pontos essenciais ficarão resolvidos. Até porque «a nova legislação irá clarificar os direitos e deveres, quer dos produtores, quer das entidades fiscalizadoras, e acabar com os excessos que se têm verificado».

Recorde-se que a reunião entre José Apolinário, secretário de Estado das Pescas, e o representante da Associação de Armadores de Peniche, aconteceu depois de 25 traineiras e 500 pescadores não terem partido para o mar, num protesto contra o excesso de fiscalização à pesca do cerco, que, segundo eles, põe em causa a pesca da sardinha.

Rainha da festa não é nossa
Para a maioria dos portugueses, um verão sem sardinhadas é como um jardim sem flores ou um agosto sem calor. Fica a faltar qualquer coisa. Mas o peixe que outrora servia de alimentação aos mais pobres corre o risco de tornar-se um capricho das elites. 

Com a definição de quotas de pesca e o fantasma de que o fim da captura pode estar à espreita e chegar a qualquer momento, a quantidade desta espécie no mercado tem vindo a diminuir de forma abruta. E não é assim tão raro ver a a lei da oferta e da procura a funcionar e a fazer os preços disparar.

Já em 2015, o assunto estava em foco por causa dos preços que começavam a ser praticados em alturas importantes como a dos Santos Populares, por exemplo. Segundo um estudo revelado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), nesse ano, os limites à captura de sardinha já faziam com que as transações em lota atingissem «a quantidade mais baixa desde que há registos estatísticos sistemáticos por espécie». Em consequência, o preço em lota atingiu o valor mais elevado dos últimos 20 anos, acrescentou o organismo.

Em 2016, houve uma ligeira subida da quota, mas as preocupações do setor não desapareceram. Muito pelo contrário. «As quotas que ficaram definidas são insuficientes», alertava, por esta altura, Frederico Pereira, coordenador da Federação dos Sindicatos do Setor da Pesca.

Embora os preços ao consumidor estejam a subir há anos para níveis recorde, os pescadores garantem que a margem de lucro adicional vai toda para os intermediários. Para quem anda no mar, não há grande diferença, dizem os pescadores. 

Sardinha e polvo lideram consumo
A verdade é que, entre 2012 e 2016, a quantidade média descarregada foi de 22 mil toneladas – cerca de 65,6% inferior à média descarregada entre 2005 e 2011. «Esta situação resultou dos limites de captura deste pelágico impostos em Portugal continental, no quadro das medidas de gestão adotadas para este recurso, que se encontra numa situação de dificuldade», sublinha o instituto.

E como consequência direta da escassez de sardinha, os preços aumentaram. Em 2015, o preço médio da sardinha transacionada em lota foi, aliás, um dos mais elevado dos últimos 20 anos. 

Com a diminuição da pesca de sardinha em Portugal, o INE aponta para consequências evidentes nas transações internacionais. Há um nítido recurso às importações de sardinha fresca e congelada, que entre 2010 e 2015, por exemplo, cresceram a um ritmo médio anual de 11,6% em quantidade e de 15,9% em valor. 

Em novembro do ano passado, ficava claro que o país continuava a importar o dobro da quantidade de sardinha que exportava. Entre janeiro e agosto de 2017, foram vendidas 6,1 mil toneladas. Já as compras ao estrangeiro ultrapassaram as 14,5 mil toneladas. 

A verdade é que a sardinha e o polvo são os pescados mais consumidos em Portugal, que, dentro da União Europeia, é o país com o maior consumo anual ‘per capita’ destas espécies (em média, 57 quilos por pessoa contra uma média europeia de 17).