Em Nova Orleães, no final do século XIX, Canal Street era um centro do xadrez de rua, geralmente espontâneo. Baixo, magro, de colete e monóculo, bengala sempre pronta a ser erguida perante alguém mais expansivo, Paul Morphy tornou-se num fantasma habitual do sítio. Já poucos lhe prestavam atenção. Tornara-se um maníaco, convencera-se que queriam envenená-lo, pelo que só comia refeições preparadas pela mãe e pela irmã, recusava-se a entrar num barbeiro garantindo que todos os fígaros da cidade queriam cortar-lhe a garganta.
Vários anos antes, Morphy sentara-se frente a frente com um negro idoso e perturbador. Com o tabuleiro entre ambos, este propusera-lhe: «Para te dar uma pequena vantagem, jogo sem uma das torres». Assim fez e ganhou. Na desforra, repetiu a facécia. Ao terceiro jogo, Morphy disse que jogaria também sem uma das torres. Deu um xeque-mate fácil. Mais tarde explicaria: «Ao tirar uma das torres, ele passava a jogar outro jogo. Não era xadrez. Era quase idêntico, mas diferente. Quando, por minha vez, tirei a torre, passei a jogar o mesmo jogo do que ele e a partir daí foi simples».
Desde criança que Paul Morphy se mostrou absolutamente dotado para o domínio das 64 casas. Apresentava-se no clube de xadrez da Royal Street de calções de veludo e laçarote ao pescoço e provocava umas boas gargalhadas antes de deixar profundamente abespinhados os que iam tendo a coragem de desafiá-lo. Ernest Morphy, seu tio, diretor do jornal La Régence, escreveu sobre ele: «When seated before the chessboard, his face betrays no agitation even in the most critical positions; in such cases he generally whistles an air through his teeth and patiently seeks for the combination to get him out of trouble».
O assobio entredentes de Morphy era exasperante para os adversários. Algo de causar aneurismas e comichões no sangue, diria o Alencar d’Os Maias.
O miúdo estava-se bem nas tintas. Depois de ter batido Johann Lowental, um refugiado húngaro com fama de xadrezista invencível, o fedelho limitou-se a reduzir a isto o seu espinafrado opositor: «Um tipo cómico».
Paul Morphy concluiu o seu curso de Direito, na Universidade da Louisiana, tão jovem que teve de esperar dois anos para poder praticar advocacia. Conta a lenda que se limitara a decorar, sem qualquer esforço, todas as sebentas. A paciência não era, de certo, uma das suas virtudes. De tal forma que, nesse tempo em que os lances de xadrez não eram cronometrados e os jogos podiam durar horas a fio, ou mesmo dias inteiros, criou uma aversão atroz a todos os adversários que considerava lentos, como por exemplo, Louis Paulsen, um emigrante alemão que o levava ao desespero pela sua lerdeza e, desconcentrando-o, acabava por vencê-lo.
Em 1858, Morphy tinha criado uma obsessão. Ou melhor: mais uma obsessão. Teria de defrontar, desse por onde desse, o inglês Howard Staunton, considerado o mais forte jogador de xadrez da Europa. Tanto assim que embarcou para Londres na sua peugada.Debalde. Bem à inglesa, Staunton recebeu o seu convite como snob que era: «Morphy is a professional, not a gentleman!». Frase definitiva, por mais que o americano jurasse a pés juntos que nunca tinha ganho um tostão num tabuleiro.
Frustrado em Londres, seguiu para Paris onde se tornou famoso por disputar simultâneas de olhos vendados contra oito adversários, ganhando sempre. Foi aí que a confusão começou a tomar conta dele. Regressou a Nova Orleães decidido a nunca mais voltar a jogar xadrez. Abriu um consultório jurídico mas os seus clientes queriam ouvi-lo falar do jogo e não de querelas legais. Podia ter desistido dos tabuleiros, mas estes nunca mais sairiam da sua vida.
Voltou a estudar. Matemática, física, qualquer matéria que lhe desse na gana. Ao contrário da opinião de Staunton, a fama de Morphy nos Estados Unidos estava firmemente escorada. A revista Chess Monthly dedicou-lhe uma edição na qual se podia ler: «His genial disposition, his unaffected modesty and gentlemanly courtesy have endeared him to all his acquaintances».
De pouco lhe serviu.
Durante a sua estadia em Paris, Morphy foi atacado por violentas febres intestinais e tratado à base de sanguessugas. Talvez tenha nascido aí o seu pavor ao envenenamento. E foi certamente a partir daí que começou a ter comportamentos cada vez mais estranhos. Edward Winter, que escreveu uma biografia sobre ele, refere o seu hábito de compor no meio do quarto um semicírculo formados por uma dúzia de pares de sapatos. Questionado sobre isso, encolhia os ombros:«Fica mais fácil para escolher os que quero usar».
Depois saía para Canal Street de monóculo equilibrado numa das arcadas supraciliares e observava os jogadores de xadrez à distância. Eles sabiam quem era Paul Morphy. Já Morphy tinha muitas dúvidas em relação ao assunto. Ficara infinitamente preso para lá do tabuleiro.