E garoupa arrefecendo na travessa…

De cada vez que penso nos personagens que povoam esta minha coluna semanal recordo-me daquela curiosíssima declaração do Reynaldo Ferreira, o formidável Repórter X: «Já uma vez escrevi um folhetim quilométrico em três dias – trezentos quartos de papel. Também confesso que cheguei ao final e já não me lembrava do que sucedera aos heróis…

De cada vez que penso nos personagens que povoam esta minha coluna semanal recordo-me daquela curiosíssima declaração do Reynaldo Ferreira, o formidável Repórter X: «Já uma vez escrevi um folhetim quilométrico em três dias – trezentos quartos de papel. Também confesso que cheguei ao final e já não me lembrava do que sucedera aos heróis da obra. E o público gostou. Eu nunca o li: e, por isso, não sei se era bom ou mau. Admiro-me apenas por não ter assassinado duas vezes os mesmos personagens e por não os fazer avós antes de terem filhos».

Claro que, aqui, não decido sobre a vida ou sobre a morte de ninguém, limito-me a trazer-vos episódios de gente que foi ficando, por uma razão ou por outra, na memória das pessoas, mesmo que muitas vezes tenha sido a morte a torná-los perpétuos. Ora bem, era aqui que queria chegar: na pré-história da Humanidade, ou seja, antes dos telemóveis, volta e meia, aí pelo meio-dia, recebia em casa uma chamada que autenticamente me chamava: «Afonso, hoje temos almoço?» Do outro lado, a voz em tom baixo de Chaliapine do Vítor Damas, que também era Afonso. E íamos ali ao Areeeiro, ao Manel Caçador, às cabeças de pescada ou de garoupa até ao momento de eu me levantar da mesa e o deixar na companhia fatal de uma amiga traiçoeira à qual se agarrava como se teimasse em querer ver sempre o fundo de ambos.

Duas, três, meia-dúzia de vezes, o Vítor trazia consigo Carlos Gomes, aquele a quem os espanhóis chamavam El Más Grande Portero del Mundo, e então a conversa ia para além da memória e desenvolvia-se por entre fantasmas e  lendas num lugar que não existe mais porque ambos deixaram já de viver na realidade simples das palavras, partindo injustamente cedo para a eterna planície da saudade.

Carlos Gomes tinha uma relação complicada com a modéstia, mas talvez fosse isso que o fazia especial. «Os melhores guarda-redes de sempre do futebol português fomos nós dois», dizia. Eu provocava o Damas: «És capaz de dizer o mesmo?» E o Vítor sorria: «Eu? Nunca! Essa é a maior diferença entre o Carlos e eu…»

Uma figura, uma figura, esse Carlos Gomes. Quando jogava, antes de entrar em campo, em Alvalade, vinha à porta buscar os miúdos que ali se juntavam à sua espera e levava-os para dentro, sem pagarem nada. Tinha sempre um público especial entre a rapaziada de Lisboa. «Uma vez o dr. Góis Mota, que era dirigente do clube, apanhou-me a sair do balneário e ficou furioso: “Onde é que vais?” E eu, encolhendo os ombros: “Vou só num instante arrumar a motorizada…” Começou aos gritos: “Não vais nada, vais é buscar essa cambada de garotos. Proíbo-te! Nunca mais!” Então voltei para trás e comecei a despir o equipamento. E ele: “Mas, que estás a fazer? És louco?” E eu: “Não jogo. Se eles não entrarem não jogo. Jogue você!” A partir daí deixou de me chatear».

Puseram-lhe a alcunha de O Bocas: não perdia a oportunidade discutir com os dirigentes, era um boémio, apreciador de vinho, adorava surgir por toda a parte na companhia de mulheres vistosas, descontavam-lhe metade do ordenado em multas mas ele estava-se nas tintas, dizia que recebia uma mesada da avozinha. E era um brincalhão nas balizas, procurava os truques de circo, ansiava pelos aplausos. Segurava a bola com uma mão, passava-a por cima da cabeça do avançado que estivesse na sua frente, apanhava-a do outro lado e ficava à espera da reacção das bancadas. Ou atirava-se em direcção de uma bola chutada com perigo, mergulhava por debaixo dela e repelia-a com os calcanhares. Em Espanha, no Granada, farto de não receber o que  lhe deviam, recusou-se a jogar: «No hay dinero, no hay portero!» 

  Nesse Portugal salazarento a preto e branco, foi acusado de comunista e proibido de ir à selecção durante um ano por se recusar a ver o Papa. «Foi antes de um jogo em Roma, frente à Itália. na véspera tinha dado umas voltinhas até tarde, queria dormir de manhã, e vieram acordar-me para ir ver o Papa. Ora, eu não tinha nada contra o Papa, mas como estava ressacado reclamei: “Que se lixe o Papa!” Um ano de suspensão imposto pela federação».

Certo dia, fugiu do país. Acusado de tentativa de violação de uma menina. «Foi no dia de um jogo do Atlético. O agente Marques avisou-me: “Estás perdido!”. E eu pensei para comigo: “Tenho que me pirar pela porta do cavalo”. Ao intervalo, com a ajuda do Juanito, do Casal Ventoso, arranjei um sêlo para o passaporte e saltei a fronteira. Depois, em Madrid, pedi um visto na Embaixada de Marrocos e meti-me no comboio para Tânger onde pedi asilo político. A história da menina não passou da vingança de um taxista que não gostava de mim».

Contava tudo isto com um gozo infinito. E eu e o Damas escutavávamos com um gozo infinito. Carlos Gomes tinha o dom da palavra. E o dom de falar sobre si mesmo. A cabeça de garoupa arrefecia na travessa…