Fantomas, o Coxo Rei dos Ringues

Alemão era alto e loiro. Mas tinha um problema que eram dois: não sabia lutar e tinha uma perna mais fina do que a outra

Há dois ou três dias, ao entrar no carro, encontrei uma louva-a-deus pousada no capô. Pensei que mais valia uma louva-a-deus do que uma pomba. Ou uma gaivota, cujo guano costuma ser decapante. E pensei que ainda bem que as vacas não têm o mau hábito de voar, embora tenha havido um avançado-centro da Académica e do Sporting a quem chamavam A Vaca e voava como o Jardel sobre os centrais. Luís Fernando Veríssimo afirma cientificamente que um ser humano vislumbra uma louva-a-deus de sete em sete anos em média. Sinto que estou em falta com a ciência e com as louva-a-deus. A última que vi foi na televisão: um combate de luta livre. Daqueles que valem pelas máscaras e pela aldrabice. E que, lá pelas primeiras décadas do século passado, serviam para que verdadeiros pugilistas fossem aforrando mais uns tostões para a hora em que as cartilagens e os tendões dessem definitivamente de si.

Em 1979 não garanto que tenha observado alguma louva-a-deus, mas recordo-me de uma tarde de calor senegalês em Vila Nova de Foz Côa ter, a meias com o meu velho companheiro José Manuel Mesquita, amarrado um exemplar desses insetos ao cabo de uma esferográfica e ficarmos a ver a facilidade de açougueiro com que retalhava as moscas que lhe púnhamos à frente. A experiência foi fascinante. E tão científica como a afirmação de Veríssimo.

Em 1979, no Brasil, a TV Bandeirantes inaugurou um programa chamado Astros do Ringue. Era um ver se te avias: por lá passou gente tão diversa como Ted Boy Marino – o inventor da tesoura de costas -, Tigre Paraguaio, Rasputin, Caipira Dom Afonso, ou Cavaleiro Vermelho. Na apresentação, três astros da luta: Homem Montanha, Gran Caruso e Cangaceiro. Por cá também tivemos um Homem Montanha, o formidável Santa Camarão, de Ovar, que no seu tempo de fragateiro em Lisboa fazia correr pelas ruas de Alfama uma quadra motivada pela paixão: «Santa Camarão/Foi do boxe campeão/Por ter os pés delicados/Também a Ilda Fernandes/Por ter umas mamas grandes/Foi rainha dos mercados».

 

Mas eu queria era falar do Fantomas. Não o Fantomas sociopata e sem escrúpulos dos assassinatos macabros dos livros de Marcel Allain e Pierre Souvestre, mas O Justiceiro Mascarado, o Rei Coxo dos Ringues. Isto assim dito parece um bocado como os livros aos quadradinhos de cowboys: «Entre os mortos havia um que respirava – Texas Jack!». Vendo bem, é mesmo muito como os livros aos quadradinhos de cowboys, só que mete O Louva-a-Deus (a Fúria Verde), o inimitável El Condor, o brutal Vulto Negro e a inesquecível Múmia.

Foram os emigrantes italianos e alemães que levaram para o Brasil tanto o boxe como a luta livre. Garantem os especialistas que o primeiro combate se disputou em São Paulo entre um francês que fazia parte de uma companhia de Ópera em digressão pela cidade e Luís Sucupira, o Apolo Brasileiro. Meteu tudo: socos e pontapés e até uma ou outra dentada. O público delirou.

Fantomas, o Justiceiro Mascarado, começou por ser apenas alemão. Inconfundivelmente alemão: alto, loiro, espadaúdo, poderia ter feito parte da guarda de honra do kaiser Guilherme II, lá da Prússia, não se desse o caso de no tempo do kaiser estar pelo Brasil. E com uma vontade indomável de se tornar lutador. O problema de Alemão, como todos o conheciam, eram dois: não sabia lutar e era coxo. Tinha uma perna mais fina do que a outra, sequela de uma poliomielite que lhe marcou a adolescência. Seria o empresário Chico Sangiovanni a resolver o tal problema que eram dois.

 

Como, no início, os lutadores subiam ao ringue praticamente despidos, geralmente só com certos pormenores anatómicos escondidos por pedacinhos minúsculos de pano barato, era complicado exibir o Alemão em toda a sua exuberância de manquitó. Convenhamos: esteticamente entrava já derrotado.

Para Chico Sangiovanni o assunto nem chegou a ser assunto: inventou Fantomas, O Justiceiro. Vestiu o alemão com uma roupa preta, desenhou-lhe uma máscara e criou um reforço mecânico para a perna bamba que disfarçava o aleijão e a impedia de dobrar. Como não sabia lutar, Fantomas limitava-se a ser inteiriço, ali em pé, sujeito à melhor ou pior disposição dos adversários. Basicamente, só apanhava.

Alemão só participou num combate: preso naquela espécie de armadura, viu-se espancado sem dó nem piedade e não achou grande graça à coisa. No dia seguinte anunciou a retirada para desgosto de Chico. Afinal a simples presença em palco de Fantomas tinha provocado a maior das excitações na plateia. Não teve outro remédio se não arranjar um novo Justiceiro Mascarado. Escolheu o argentino Vicente Pometti, El Toro. E inventou-lhe um inimigo: um tipo enorme chamado Arnaldo, vestido com uma farda de polícia. Nenhum deles teve o charme inconfundível de Alemão, o Rei dos Mancos.

afonso.melo@newsplex.pt