O cão do Jorginho dos view-masters

Os antigos contam sobre ele histórias extraordinárias e eu nunca duvido da palavra dos antigos. Os antigos são o meu pai e os seus amigos lá de Águeda que conheceram o Hernâni ainda garoto. Muito tempo antes de eu ser, pela minha vez, garoto de Águeda, do adro ao rio, da Venda Nova ao Alfusqueiro,…

Os antigos contam sobre ele histórias extraordinárias e eu nunca duvido da palavra dos antigos. Os antigos são o meu pai e os seus amigos lá de Águeda que conheceram o Hernâni ainda garoto. Muito tempo antes de eu ser, pela minha vez, garoto de Águeda, do adro ao rio, da Venda Nova ao Alfusqueiro, e ter visto jogar o Fanfas, o Telha e o Manuel Joaquim, e o Pincho de Timor dos confins do Império – onde ficava o Pico Ramelau, o ponto mais alto de Portugal com 2963 metros de altitude – e o retinto Tito Lívio, negro azeviche no alto do seu orgulho tímido de historiador de Roma e dos Tarquínios.

O rapaz da Dona Aurora corria à desfilada com a bola de trapo nos pés e, de repente, num passo de bailarino, entalava-a entre os calcanhares e fazia-a passar sobre a cabeça e sobre a cabeça do adversário. Era, até certo ponto, uma magia. E os antigos viram e contam. 

«Filho único a mãe lhe dera/Um nome e o mantivera/‘O menino da sua mãe’». Era Balreira do pai, mas ficou da Silva Ferreira, apelidos que o futebol português conjugou, depois, em Eusébio da Mafalala, Ferreira da Silva, como se fizesse questão da brincadeira, do calembour. Francisco Duarte, o pai do Manuel Alegre, levou-o a Coimbra e não o quiseram. Murmurou: «Enganaram-se…». Levou-o a Lisboa e ao Benfica, e responderam-lhe que igual a ele havia por lá muito. Cerrou os dentes e rumorejou: «Enganaram-se outra vez!».

 Veio Soares dos Reis e o Porto foi o destino. Em Águeda fundara um clube, o FC do Adro, entre a escola, a igreja e o cemitério, campo de nós todos, antigos e não antigos, fazendo balizas do lado do cruzeiro onde havia um castanheiro-da-Índia com os seus ouriços que se transformavam em projeteis dolorosos depois dos jogos e no momento de assaltar o muro que ficava no fundo do meu jardim a dar para a Casa do Adro e à sombra sinistramente branca do edifício do CEFAS.

Alguém, não sei quem, chamou-lhe um dia O Furacão de Águeda. Hernâni cumpriu o futuro que lhe liam nos astros. Jogou na seleção, na civil e na militar, esteve no Estoril enquanto cumpria o maçador dever da tropa, um campeonato inteiro por dez contos, ele próprio o contou numa daquelas revistinhas que saíam ao domingo pela mão de Mário de Aguiar com o título de Crónica Desportiva.

O Recreio de Águeda nunca foi um dos clubes de Hernâni, apesar de ele sempre ter confessado essa paixão. Passou por lá num repente tão repentino como as suas fintas velozes de entontecer defesas inóspitos. Correu sobre o pelado do Campo de São Sebastião, já sem a trapeira, para lá do muro de tijolo onde se dependuravam os curiosos que não se sentavam nas bancadas periclitantes de madeira encaixadas à força metálica de ferros pouco críveis. Havia o lajedo do basquete atrás da baliza leste e o baldio onde cresciam vinhedos selvagens no fundo da rua dos bombeiros. Havia a capela que nunca-pode-sair-do-seu-lugar porque traz consigo uma maldição qualquer. Havia a fábrica Silva & Irmãos. Havia a mercearia do Jaime. E havia o cão do Jorginho dos view-masters.

Águeda foi sempre uma terra muito rica em cães. Cães distintos, quero dizer. O Tom Mix, do tenente-coronel Lobão, um pastor-alemão tão militarizado que poderia ter servido nas Waffen-SS, sempre às ordens da caninha do dono, ora sentado, ora em pé, mas em pé mesmo, as patas dianteiras subidas e assente nas de trás, ou em marcha lenta acompanhando o trote ordenado que foi sendo cada vez menos firme até morrerem os dois. O Black, cão dos Searas, reconhecido como pastor-do-Biafra, esmifrado de fome e maus tratos mas jupiteriano dono do largo da Venda Nova onde também habitava o Chico, o corvo do café do Mário dos Táxis, a raspar o chão numa inquietação de vermes, as asas cortadas nas pontas para não voar, tropeçando nos sapatos dos clientes por debaixo das mesas a debicar migalhas de pão, cascas de tremoço e amendoins e a crocitar de quando em vez um – «Olá!» – roufenho que alguém lhe ensinou vá lá saber-se a que custos da paciência.

Não sei como se chamava o cão do Jorginho dos view-masters. Sei que de cada vez que o Recreio ganhava, subia ao seu trono de águas-furtadas e, lá de cima, equipado a rigor, com a camisola grená com o emblema em brasão, a bola de futebol castanha de travessas no centro, a cruzeta branca e azul num fundo de cor de vinho, as letras em redor – RDA, Recreio Desportivo de Águeda – ladrava um discurso petulante de amor ao clube e esperança renovada num futuro de glórias imarcescíveis. 

Os domingos de Hernâni, a quem chamaram o Furacão, talvez também tivessem latidos como os que me canhoneiam a memória. Mas duvido que tenham sido sentidos como os que, pelo fins da tarde, vigiados pelo olho maldoso de um corvo paraplégico, se espalhavam a toda a largura de um céu de águas-furtadas.

afonso.melo@newsplex.pt