Para lá das mentiras, os factos

Na parte inicial do seu texto, MS desenvolve um raciocínio rocambolesco para explicar as posições que tomei.

O vereador Manuel Salgado (MS) entendeu dever abordar as questões que coloquei no semanário SOL sobre a política urbana que tem protagonizado na CML, através de um conjunto de juízos de valor. Está obviamente no seu direito, mas não seguirei o mesmo registo. Também não abordarei os problemas relativos aos casos que estão a ser investigados. Abrirei a este respeito uma única excepção, dado que os factos que se reportam a esse caso foram de tal modo desvirtuados na resposta de MS, que merecem pronto esclarecimento. 

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A Torre de Picoas

Esta é a exceção sobre um caso em investigação sobre o qual me pronuncio. Sejamos claros. A não aceitação de uma área de construção superior a 13 mil metros quadrados para escritórios (quando o dono do terreno pretendia 17 mil para o poder vender a um cliente, que acompanhou as negociações com o pelouro do urbanismo), seguiu o normativo aplicável à data (2011), ainda que se pudesse ter recorrido ao disposto no PDM em vigor para situações excecionais, nomeadamente quando se tratasse de edifícios isolados, numa envolvente em que as cérceas dos edifícios existentes já ultrapassavam a norma do valor modal, como era o caso. Não é isso que está em causa. A questão é apenas esta: na altura em que as negociações foram interrompidas e MS informou por escrito o requerente que não era autorizada uma área de construção superior, o novo regulamento do PDM de Lisboa já estava redigido e os artigos em causa não sofreram alterações de conteúdo após a discussão pública, sendo como tal publicados em DR. Já então se previa uma nova fórmula para o cálculo da cércea e a possibilidade de aumento de área de construção pela aplicação de créditos, embora esta só se viesse a regulamentar posteriormente, devido a várias discussões, quer técnicas quanto políticas. Na altura não existia maioria absoluta na Assembleia Municipal, pelo que os regulamentos teriam de obter o acordo da oposição para serem aprovados. Foi apenas isso que levou ao desfasamento das datas de aprovação do regulamento do PDM e do relativo aos créditos de construção. Mas essa possibilidade de bonificação, e os princípios a que esta deveria obedecer, já constava da proposta de 2011. Sabendo a CML que o dono do terreno estava há 20 anos a tentar viabilizar uma construção para essa área, não seria da mais elementar transparência informá-lo de que, caso esperasse mais uns meses ou um ano, as suas pretensões poderiam ser atendidas? Será defensável que esse promotor se visse na situação de ter de entregar por 1 euro o terreno ao BES, para assim poder saldar a hipoteca que nele tinha contraído sobre o terreno em causa? 

Por último, quanto à insinuação de que o tratamento ‘familiar’ com o dono do terreno poderia justificar a minha posição, limito-me a esclarecer o seguinte: fui colega do Eng.º Armando Martins no IST, morámos na mesma rua e encontramo-nos várias vezes no mesmo café do bairro. Daí tratarmo-nos pelo nome próprio. Mas, ao contrário de MS, nunca trabalhei para esse promotor, nem com ele tive qualquer relação profissional. 

Para além deste caso, tão marcante e polémico, há outros que merecem esclarecimento.

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A sua visão para a cidade

Confundir propositadamente o que são objetivos estratégicos e um instrumento de gestão territorial como é o PDM, com a sua tradução na prática quotidiana da gestão da cidade, é algo que nenhum urbanista deveria fazer. Daí que, em resultado dessa prática, em vez de ‘mais pessoas’, Lisboa continuou a perder população e só recentemente começou a recuperar alguma à conta dos estrangeiros que vieram viver para a cidade. Os bairros históricos, a cidade ‘do caroço’, continuam a expulsar a população que sempre aí viveu ou gostaria de continuar a viver. Que o digam os idosos e os casais jovens. A sangria foi de tal forma importante que um presidente de junta de freguesia do centro histórico, dizia recentemente numa entrevista que qualquer dia já não teria eleitores nem pessoas para integrarem as marchas populares! Por outro lado, a própria CML acabou por reconhecer a gravidade e extensão do problema, ao anunciar um ambicioso programa de habitação a custos acessíveis. Como é usual dizer-se, ‘depois da casa roubada, trancas na porta’. 

Já a prioridade à reabilitação urbana traduziu-se na prática em mais hotéis, habitação de luxo e grandes projetos comerciais e de escritórios. Duvido que fosse isso que estava na mente dos que, como eu, aprovaram a Carta Estratégica de Lisboa. Como também não o foi, quando aprovámos ‘melhor cidade’, isso significar a subalternização da renovação das infraestruturas da cidade, o abrandamento do programa de recuperação das escolas, o abandono do programa de estacionamento para residentes, a lentidão na concretização da oferta de novas creches e jardins de infância, ou a qualificação do espaço público nos bairros residenciais a partir das Zonas 30. 

Se dúvidas restassem quanto à visão de MS para Lisboa, atente-se nas suas propostas para a Colina de Santana (hotéis e condomínios de luxo em substituição dos hospitais e outros equipamentos aí existentes) e, mais recentemente, para a anulação da classificação de interesse público para um conjunto de edifícios, alguns com evidente interesse patrimonial (antigas sedes da Fundação Oriente, dos CTT e da EPAL, todos na zona da Av. da Liberdade), para estes poderem ser transformados em hotéis e habitação de luxo. Em ambos os casos foi a AML, através da iniciativa da sua presidente, que trouxe a questão a público e logrou parar (pelo menos para já) os dois processos.

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Segunda Circular

Quem viu os desenhos publicados na imprensa aquando do anúncio da intervenção na Segunda Circular, não poderá deixar de constatar que a introdução do separador central arborizado, tal como na altura era proposto, implicaria na prática a redução da faixa de rodagem, fosse pela supressão de vias de entrada e saída, fosse pela redução da largura das vias, com a consequente diminuição de capacidade. Face à oposição que o projeto suscitou, e só após a elaboração do projeto de engenharia, é que alguns destes problemas foram minimizados. Mas não era essa a intenção inicial, como o demonstrava o estudo de tráfego então apresentado, que previa uma redução do número de veículos na ordem dos 20%.

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Linha Circular do ML

A proposta de expansão da rede do ML é apresentada publicamente em agosto de 2009, pouco antes das eleições autárquicas desse ano. Aí constam prolongamentos para Loures/Infantado, Sacavém, Benfica/Av. do Uruguai, Hospital Amadora/Sintra, Alcântara e Alvito, bem como uma linha circular. Como qualquer urbanista sabe, na elaboração de um PDM é obrigatória a inclusão das propostas que o Governo tenha aprovado, sem o que o Plano nunca se poderá concluir. Assim, independentemente da posição que cada município tenha sobre o assunto, não lhe resta outra alternativa que não seja incorporar essas decisões governamentais, reservando o espaço necessário à sua concretização na respectiva Planta de Ordenamento. Daí que, no PDM de Lisboa, figure não só a linha circular do ML e as extensões para Campolide, Amoreiras, Campo de Ourique, Alcântara e Alvito, como também a Terceira Travessia do Tejo (Chelas/Barreiro) nas suas vertentes rodo e ferroviária, ou a linha de alta velocidade ferroviária na zona de Marvila e Parque das Nações. 

No entanto, a linha circular então proposta não era a que está em projecto. O prolongamento da linha vermelha tinha uma bifurcação em Campo de Ourique, para dar origem a duas extensões: uma para a Estrela e Alcântara (onde faria ligação à Linha de Cascais) e outra para o Alvito (onde se conectava com o comboio da Ponte 25 de Abril), enquanto a linha circular infletia do Rato para S. Bento e Santos. Como facilmente se comprova, essa linha circular não interferia com a ida a Alcântara, ao contrário do que agora sucede. 

Mas a questão de fundo não é sequer esta. Ao contrário do que sempre foi a prioridade defendida pela CML desde a gestão de Jorge Sampaio – a ida a Alcântara, servindo importantes áreas residenciais e de emprego da cidade e assegurando uma ligação direta da Linha de Cascais às Avenidas Novas, sem concentrar todos os transbordos no Cais do Sodré – o atual executivo apontou como prioridade a construção da linha circular. E é precisamente essa prioridade que se contesta, por servir pior a cidade e a AML, para além dos inúmeros problemas de construção e exploração que apresenta, como tem sido sobejamente denunciado por engenheiros qualificados e conhecedores do funcionamento do ML e das obras por este realizadas num passado recente.

Na parte inicial do seu texto, MS desenvolve um raciocínio rocambolesco para explicar as posições que tomei. De acordo com a narrativa apresentada, estas teriam sido motivadas por duas ‘desfeitas’ que teria sofrido na minha curta experiência autárquica: a retirada do pelouro das obras municipais e o posterior não convite para integrar as listas para a CML nas eleições de 2013. É a sua opinião. 

Quanto à primeira questão, o que na altura denunciei, e me levou a equacionar deixar de ter funções executivas, foi o facto de MS ter exigido ao presidente da CML que ou ficaria com a tutela de todos os departamentos da direção municipal de projetos e obras, ou não ficaria com nenhum. Havendo na altura o precedente de uma dupla tutela em relação ao departamento de obras na área da habitação (que estava na dependência da vereadora com o respetivo pelouro), não se compreendia o porquê desta exigência em relação à rede viária e à sinalização de tráfego, quando o pelouro da mobilidade me continuava atribuído. Tal como na altura previ, e denunciei junto dos meus colegas dos ‘Cidadãos por Lisboa’ (CpL), o objetivo final desta exigência de MS era apenas evitar que o pelouro tivesse capacidade de concretizar propostas no terreno, sem o seu aval. Bastará a análise das prioridades de intervenção do pelouro das obras a partir de meados de 2011 (passou-se do ‘tratar da cidade para o ‘embelezar a cidade’), do que foi executado e do que ficou por realizar, para se perceber as consequências desta mudança no domínio de intervenção do pelouro da mobilidade. Por outro lado, ao definir as prioridades de cabimentação financeira dos projetos, MS passou a controlar na prática o que se podia ou não concretizar na cidade. 

Ora foi precisamente por ter visto na prática o que significava ter competências e verbas atribuídas no orçamento municipal, mas não conseguir concretizar no terreno os projetos aprovados, que não aceitei o convite para ingressar nas listas de 2013. Ao contrário do que MS afirma, a recusa foi minha, apesar do reconhecimento do trabalho realizado, tanto pelo presidente como pelos colegas CpL.

Por fim, alguns esclarecimentos quanto a concursos públicos e ao funcionamento dos serviços de gestão urbanística da CML. Ao fim de 11 anos de poder absoluto com as áreas do Planeamento, Urbanismo e Espaço Público, Património e Obras, não deixa de ser curioso que os únicos concursos públicos de relevo tenham sido lançados pela APL, a EMEL ou pela então Frente Ribeirinha de Lisboa, ainda que, como é curial e desejável, com a participação da CML. Tanto para a Praça de Espanha como para o Parque Ribeirinho Oriente, os concursos foram apenas para a vertente de arquitetura paisagística. 

No que se refere aos serviços de gestão urbanística, só quem nunca teve de recorrer a eles pode considerar que aí se procura ajudar e facilitar o licenciamento de pequenas obras ou a regularização de obras antigas, como, por exemplo, a habitabilidade de um sótão. Nada disto tem a ver com ‘corrupção’ ou outro tipo de situação menos clara, mas tão só com os procedimentos administrativos definidos e o modo como são interpretados. Quem não tem acesso à ‘via verde’ dos grandes projetos, conhece bem essa realidade kafkiana.

Em relação aos demais pontos focados no texto de MS, limito-me a aguardar as conclusões dos inquéritos em curso.

 

Lisboa, 2 de outubro de 2018.

Fernando Nunes da Silva