Hoje vinha disposto a falar do Aznavour Futebol Clube, que surgiu aquando da independência da Arménia no lugar do Pahatsoyagorts Noyemberyan, mas a verdade é que o clube está mais defunto do que o artista que lhe deu o nome e já foi enterrado em 1997. Por isso vou falar de cães. Não sou um grande adepto de canídeos, acho sempre que lambem as mãos de quem lhes dá pontapés e mordem as mãos de quem lhes dá de comer. Prefiro gatos: estão-se nas tintas. Mas os gatos não correm. Têm mais do que fazer. Por isso, fico-me pelos cães.
Com toda a ligeireza lapalissiana que me assiste, reconheço que há cães e cães, e o meu velho companheiro José Manuel Mesquita tem um cão que me agrada pelo excesso de educação. Chama-se Simba e é negro, vibrante e luzidio como o melro de Guerra Junqueiro. Ou melhor, é retintamente solene como se vestisse uma toga. Se me permitem: um senhor! Ainda por cima com uma história de vida que meteu quinze dias perdido nos matos do Alentejo graças a um sentido de sobrevivência de fazer inveja a qualquer Robinson Crusoe, mais sexta-feira, menos sexta-feira. Como passa horas no escritório de advogados do dono, não me espantaria, ao fitar o seu focinho protocolar, que tenha sabedoria equivalente a um oficial de diligências, se é que não está habilitado para funções de notariado.
Há uns anos, em Macau, fui de longada até ao canídromo, com o impecável Gilberto Lopes, assistir às corridas de galgos que ocupam muitas boas noites dos apostadores macaenses. Não deixa de ser fascinante aquela precipitação excitada por causa de uma lebre mecânica que lhes faz crescer água na boca como se estivesse cozinhada em civet. Embora, claro, não abone muito a favor da sua inteligência. Lá está: apostaria singelo contra dobrado, à moda dos velhos livrinhos do_Texas_Jack, que o circunspecto Simba, a despeito de ser caçador, desprezaria a miragem automática daquela farsa de laparoto. Dando razão a Sérgio Porto, ou melhor Stanislaw Ponte Preta, que não se eximia de afirmar: «O cachorro é um ser humano como outro qualquer».
Mick the Miller nasceu em Killeigh, na Irlanda, no dia 29 de Junho de 1926. Não foi apenas um ser humano como outro qualquer como foi, também, o cão mais famoso da história do desporto. Apesar de a sua carreira nas pistas não ter durado mais do que três anos, somou vitórias atrás de vitórias – 19 corridas consecutivas – as mais retumbantes das quais no English Greyhound Derby, em 1929 e 1930. Ah! Como os ingleses apreciaram as qualidades de Mick the Miller. Foi preciso esperar 43 anos para que outro ser humano do género conseguisse proeza igual:_Patricias Hope. Com um requinte: no mesmo ano conquistou a Triple Crown, ou seja, triunfos no English Greyhound Derby, Scottish Greyhound Derby e Welsh Greyhound Derby. Pode ser que todo este britânico orgulho não encaixe na nossa muito portuguesinha forma de ver o mundo, mas é exatamente por isso que a Terra é um planeta no qual existe a Inglaterra. «If I may say so…».
Voltemos a Miller. Acrescente-se que a despeito de ter nascido em Killeigh, não longe das destilarias de Tullamore, não era nenhum parolo com queda para as libações alcoólicas. Teve, pelo contrário, uma existência buliçosa. O mais pequeno de uma ninhada de dez irmãos foi levado ainda filhote para os_Estados Unidos por Moses Robensheid, um treinador decidido a fazer dele um campeão. A natureza não esteve para aí virada e um tornado deu cabo das instalações de Robensheid em St. Louis, Missouri. Moses ignorou a natureza e irritou-se com Deus, que nestas coisas costuma ter as costas muito largas. Rogou umas pragas, amaldiçoou a sua pouca fortuna e decidiu que recebera um sinal divino para se deixar de brincadeiras com cães, campeões ou não. Mick the Miller teve igualmente a sua experiência religiosa: foi vendido sucessivamente a dois padres, Martin Brophy primeiro, Maurice Browne depois.
O padre Browne não tinha a inocência do padre Brown de Chesterton. Para compensar tinha jeito para o negócio. Levou Mick de volta para a Irlanda e fê-lo correr como bom galgo que era. E depois da vitória no English Greyhound Derby de 1929, tratou de vender o bicho por nada menos de 800 Libras esterlinas. Juntou o útil ao agradável pois a Igreja Católica da Grã Bretanha clamava contra as corridas de cães, considerando-as uma ameaça aos jantares domingueiros de família, nada se ralando para os solitários sem famílias.
Diz-se que Mick the Miller ganhou 61 das 81 corridas em que participou até se lesionar com gravidade numa prova disputada em Wembley, viva o luxo! Reformou-se como reprodutor, o dono cobrava 50 Libras por atuação, e foi o protagonista do filme Wild Boy, em 1934. Gostava de saber a opinião do Simba sobre esta história. Ele dá razão a Mark Twain: «O cão é um cavalheiro».